sábado, 19 de fevereiro de 2011

Primeira Missa nas Praias do Acaraú

Foto: Livro Raizes Portuguesas do Vale do Acaraú

A mando do governador Geral de Pernambuco, Gaspar de Sousa, o capitão Jerônimo de Albuquerque parte do Recife, a 1 de junho de 1613, em sua primeira viagem ao Maranhão, com o fim de expulsar os franceses que haviam se apoderado da ilha de São Luis. Após pouco mais de um mês, incluindo a demora no Forte do Amparo na barra do rio Ceara onde apanhou por companheiro a Martim Soares Moreno, a esquadrilha aportou na ponta de Jericoacoara (Buraco das tartarugas) e ai foi levantado um pequeno forte de pau-a-pique, a que foi dado o nome de Fortim de Nossa Senhora do Rosário.

Por temer ataques de corsários, Jerônimo guarneceu Por temer ataques de corsários, Jerônimo guarneceu o fortim com alguns soldados, sob seu comando, e enviou Martins Soares Moreno até o Maranhão com a missão de trazer noticias seguras sobre a situação da ilha de São Luis. Por causa dos ventos contrários, Martim não pode retornar a Jericoacoara e foi arribar nas Antilhas, ilha de São Domingos, de onde seguiu para Espanha, sendo atacado por flibusteiros que o levaram preso para França. Percebendo Jerônimo de Albuquerque que Moreno não retornava a Jericoacoara, desconhecendo seu destino, resolveu desistir da continuação da viagem ao Maranhão e retornou ao Recife, aonde chegou a 26 de maio de 1614.

A 26 de julho, o governador Gaspar de Sousa recebeu ordem de Madri para fazer Jerônimo de Albuquerque empreender nova viagem de Conquista ao Maranhão, 'tendo em vista o malogro da primeira. Este, porém, já havia saído, por terra, no dia 22 de junho, com o fim de formar um contingente de índios da Paraíba. O Governador preparou uma esquadra sob o comando de Diogo Campos Moreno, tio de Martim, tendo a bordo dois padres franciscanos: Frei Manuel da Piedade e Frei Cosme de São Damião. Partiram do Recife no dia 23 de agosto, pelas sete horas da manha. Tres dias depois, aportam no Forte dos Reis Magos, Rio Grande do Norte, onde se juntam com Jerônimo de Albuquerque, que ali já se encontrava, e prosseguem viagem para o Maranhão.

A 5 de outubro de 1614, um domingo dentro da festa de Nossa Senhora do Rosário, a esquadrilha abica a praia de Jericoacoara e ali é celebrada missa de ação de graças, ao lado do Fortim, por estar no tempo Iitúrgico da festa de sua padroeira.

Dizem velhas crônicas da época que Frei Manuel da Piedade presidiu a solene celebração eucarística e pronunciou comovente sermão, intercalado com trechos em português e tupi, sendo auxiliado por Frei Cosme que dirigiu os cânticos, acompanhados ao som de órgão e flautas. Foi a primeira missa rezada nas praias do Acaraú, marco histórico dos primórdios da evangelização nessa parte do litoral cearense.
A cerimônia foi solenissima e participada ativamente por mais de quinhentas pessoas que oraram, com devoção, e cantaram entusiásticas loas a Senhora do Rosário.

Segundo informa F. A. Pereira da Costa, em “Anais Pernambucanos”, vol. 2, p. 330, “esquadrilha era composta de cinco caravelões, dois patachos e uma caravela, com cerca de trezentos homens, tanto marítimos como soldados arcabuzeiros, e com mantimento de seis mil alqueires de farinha, cem arrobas de peixe, vinte canastras de sardinha, vinte quintais de pólvora, tres peças de ferro fundido, duzentas balas de ferro e grande copia de arcabuzes e mosquetes, chumbo e marrão.»
Além dos trezentos marítimos e soldados, informa ainda o historiador pernambucano, havia mais de duas centenas de índios: “A frota devia escalar no Rio Grande do Norte para receber os índios que Jerônimo de Albuquerque escolhera das aldeias da Paraíba, cujo numero atingia a mais de duzentos”.

Esta segunda viagem de Jerônimo de Albuquerque ao Maranhão foi chamada de “jornada milagrosa”, pois segundo diz Candido Mendes de Almeida, em “Memória para o extinto Estado do Maranhão”, p. 172, aos dois frades franciscanos «não se deu coisa alguma da fazenda de Sua Majestade, antes eles de esmolas se aviaram de cálices, ornamentos e tudo o mais do culto divino necessário e da comida, com que fizeram infinitas caridades a todos os da jornada a que puseram nome “a milagrosa”.
Igual informe nos fornece, quase com as mesmas palavras, o citado trecho do livro de Pereira da Costa: “Acompanharam a expedição dois franciscanos do convento de Olinda, Frei Cosme de São Damião, que havia sido guardião do convento da Paraíba, e Frei Manuel da Piedade, pernambucano, de preclara familia, teólogo e perfeito conhecedor da língua tupi. A estes religiosos nada se deu para a viagem, mas eles de tudo se supriram por meio de donativos particulares e assim, alem das suas abundantes provisões, levaram paramentos e alfaias para a celebração dos atos religiosos”.

As peripécias desta viagem constam da “Breve Relação da Jornada da Conquista do Maranhão”, escrita pelo capitão de forasteiros Manoel de Souza Eça que havia partido de Pernambuco, na expedição de 27 de maio, e estava então no presídio do Buraco das Tartarugas, de onde seguiu para o Maranhão incorporado aquelas forças expedicionárias.

Desta mesma fonte sabemos mais “que os caravelões e a caravela eram precedidos pelos dois patachos, em um dos quais tremulava, no mastaréu de joanete no mastro de proa, um estandarte branco em que estava pintada uma efígie de São Tiago, padroeiro da jornada. Os capitães das caravelas eram João Gonçalves Baracho, Manoel Vaz de Oliveira, Luis de Andrade e Luis Machado. A mulher do soldado João Neto servia de enfermeira. A viagem total durou de 23 de agosto, quando a esquadrilha partiu do Recife, a 28 de outubro de 1614, dia em que chegou a São Luis do Maranhão.

Os dois religiosos franciscanos, que celebraram a primeira missa nas praias de Jericoacoara, tornaram-se personagens integrantes dos primórdios de nossa história, pelo que damos a conhecer alguns dados de suas biografias, para nosso reconhecimento e nossa admiração.
Frei Manuel da Piedade nasceu em Olinda em 1581, sendo filho de João Tavares e Constança Dias. Seu pai foi o primeiro governador da Paraíba (1585-1588) e o comandante de sua reconquista. Sua mãe, informa Domingos Loreto Couto em sua obra “Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco”, p. 301, era “descendente de nobre prosápia”.

A 13 de março de 1598, professou na ordem franciscana, no convento de Olinda, tendo ai lecionado filosofia ate 1614, quando se integrou voluntariamente na excursão de Jerônimo de Albuquerque na segunda viagem ao Maranhão. Dali regressou em 1616 ao mesmo convento de Olinda, onde esteve ate fins de 1617, quando seguiu para Ipojuca na qualidade de guardião do convento local. Em 1620, retornou a Olinda com a missão de ensinar, sendo eleito, em 1627, guardião do convento, cargo que exerceu até a invasão dos holandeses em 1630.

Quando esse convento foi abandonado, passou-se para o da Paraíba. A 11 de dezembro de 1631, quando atendia a moribundos no Forte de Cabedelo, foi ferido mortal mente pelos holandeses, vindo a falecer no dia 18 do mesmo mês.

Loreto Couto, na obra supracitada, o coloca em primeiro lugar entre “os religiosos naturais de Pernambuco que na religião seráfica floresceram em virtude e doutrina” e, após fazer-lhe um longo elogio sobre o profundo conhecimento que possuía da língua indígena e sobre suas virtudes, descreve com detalhes sua morte: “Empenhado Sisgismundo Vanscoph, general holandês na conquista da provincia da Paraíba, para onde se tinham retirado os moradores das praças conquistadas, preparou uma poderosa armada, e saindo do Recife e arribando a ela, deitou gente, artilharia e munições em terra, com todas as demonstrações de sitiar a fortaleza do Cabedelo. Era capitão-mor da cidade o Governador da Capitania Antonio de Albuquerque, a quem o primeiro rebate pôs na campanha, com todos os moradores que a brevidade do tempo e o repente do assalto Ihe deixou conduzir. Eram os com bates a medida dos dias e, em todos, assistia o servo de Deus Frei Manoel da Piedade com desprezo da própria vida metendo-se intrepidamente por entre nuvens de balas, exercitando a obrigação de confessor e o oficio de soldado.
Ao tempo em que furiosamente em um desses encontros se combatiam os nossos com os holandeses, com manifesto perigo se meteu pelo meio dos esquadrões para acudir com remédios da alma aos mais que lutavam com a morte do que com o inimigo, quando querendo a fortuna vender aos pernambucanos por tão custoso preço a vitoria deste dia, ou sendo chegado o tempo de se remunerarem os seus heróicos padecimentos, foi o servo atravessado pelo peito com uma bala, que Ihe tirou a vida transitória para começar a eterna”.

Segundo Frei Jaboatão informa no “Orbe Seráfico”,I, 1, p. 185, era da principal nobreza do Brasil, grande teólogo e excelente língua, por falar corretamente o tupi.
Tinha um irmão mais velho, Frei Bernardino das Neves (alibi, de Santa Maria), que missionou entre os potiguaras do Rio Grande do Norte e foi o primeiro sacerdote franciscano brasileiro, de quem trata Frei Venâncio Willeke em «Miss6es Franciscanas no Brasil», p. 53, tendo professado em 1588 e falecido em 1608.

Quanto a Frei Cosme de São Damião, companheiro de Frei Manuel da Piedade na jornada do Maranhão, sabemos que e português, natural da freguesia de São João de Guilhufe, concelho de Penafiel, onde nasceu a 18 de novembro de 1574. Dele trata profusamente Frei Basílio Rower, em «A Ordem Franciscana no Brasil», p. 166-122.

Loreto Couto (obra citada, p. 354) diz que “foi filho de Gonçalo Manoel e de sua mulher Comba Luiz”. Professou no instituto seráfico de Olinda, a 20 de janeiro de 1598 e, por ordem de seus superiores, acompanhou a Jerônimo de Albuquerque, “quando no ano de 1614 foi a conquista do Maranhão e nesta agreste e dilatada vinha semeou a palavra divina com tanto fruto, que parecia se animavam as suas vozes com o espírito dos primeiros promulgadores do evangelho. Entregue a oração e exercícios de penitencia muito rigorosos, recebeu de Deus singularíssimas mercês. Teve o dom da profecia e graça de fazer milagres”.

De regresso do Maranhão continuou a trabalhar no convento de linda, sendo eleito custódio no ano de 1633.
Faleceu no convento da Bahia a 1 de novembro de 1659, “com aclamações de santo e manifestou o Senhor as virtudes heróicas deste seu fiel servo com a voz de milagres depois de sua morte”.

A 26 de abril de 1500, domingo da pascoela, foi celebrada a primeira, missa no Brasil pelo franciscano Frei Henrique de Coimbra. Coube também a um franciscano, Frei Manuel da Piedade, celebrar a primeira missa nas praias de Jericoacoara, a 5 de outubro de 1614, dia em que começou a raiar a luz do Evangelho nesta região do Vale do Acarau.

Nesta oportunidade, e oportuno sugerir ao pároco local e ao prefeito do município de Cruz, a cuja jurisdição pertencem a capela e o distrito de Jericoacoara, que façam justiça a memória do piedoso franciscano e do notável evento histórico, fazendo erguer um monumento comemorativo ao acontecimento e tornando Frei Manuel da Piedade epônimode uma rua ou praça da sede dessa vila, tão cheia de possibilidades de desenvolver seu precioso potencial turístico.

 Fonte: Raizes Portuguesas do do Acaraú-Pe. Sadoc F. de Araújo

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