Escritores de um novo tempo, os autores que despontaram na confusa primeira década do século XXI se veem confrontados por uma série de desafios. Ora é o papel que vacila, ameaçando sair de cena para dar espaço a novos suportes de leitura, ora é a verborrágica internet, incubadora de novos literatos, que exige a reinvenção diária e, por que não dizer, a maledicência de antecessores. Tema de uma polêmica antologia, organizada por Nelson de Oliveira, os escritores da geração 00 são tema da edição de hoje do Caderno 3, que navega por uma escrita em busca de identidade e disposta a levar a literatura por mares nunca dantes explorados
Inspirado pela coletânea "Geração Zero Zero", organizada por Nelson de Oliveira, com contos de autores brasileiros que ingressaram na literatura a partir do ano 2000, o Caderno 3 lançou-se ao desafio de responder a instigante questão: quem faz a nossa Geração 00?Assumindo os riscos e as ciladas que assombraram Nelson de Oliveira - questionado sobre os nomes que ficaram de fora e acusado de falacioso e interessado em fazer "marketing literário" - e nos eximindo, de antemão, da intenção de chegar a uma lista definitiva da nova geração cearense, rastreamos algumas dessas mentes literárias que se destacam e começaram a publicar seus textos com o ingresso do novo milênio.
Seguindo a cartilha do bom jornalismo, procuramos alguns escritores cearenses já consagrados, que acompanham a produção literária do Estado para nos ajudar a desvelar essa geração. A primeira conversa é com Pedro Salgueiro, escritor iniciado na década de 1990, autor de livros como "O Peso Morto" (1995) e "Inimigo" (2007), e editor das revistas literárias Caos Portátil (um conhecido celeiro de novos talentos das letras cearenses) e, mais recentemente, Para Mamíferos.
Urik Paiva, apontado pelo escritor e antologista Pedro Salgueiro, como um dos bons nomes da literatura surgida na primeira década deste séculoFOTO: MARÍLIA CAMELOPego de surpresa e assustado com a dimensão e responsabilidade da tarefa, Pedro adverte que o início da década foi uma época de intensa produção literária no Estado, com muitos e bons autores. Como referência, ele utiliza os textos publicados nas duas revistas que edita. "Nessas revistas têm surgido muitos autores bons. Tem muito mais gente boa escrevendo por aí, mas você acaba esquecendo", diz.
Entre os novos contistas, ele cita Carmélia Aragão, premiada pela Secretaria da Cultura do Estado, por seu livro "Vou esquecer você em Paris" (2007). "É uma boa contista, que começou publicando no Caos Portátil. Ganhou um prêmio e está escrevendo outro livro", revela.
Outro bom nome é o jornalista Alan Santiago, autor da coletânea de contos "A Lua de Ur Num Prato de Terra", vencedor do edital da Secult, em 2009, editado pela coleção Rocinante, da conceituada 7 Letras. "Agora, o Alan ganhou uma bolsa da Funarte para escrever um romance", adianta Pedro Salgueiro, que acompanha os passos desta promessas literárias. Ele destaca a inventividade e a pesquisa como traços importantes na obra destes dois jovens autores. "Eles conseguem fugir do somente contar história, têm um estilo bem arrojado", afirma.
Pedro cita ainda Renato Barros de Castro, que também se sai bem escrevendo contos e publicou biografia do jornalista Lustosa da Costa e, recentemente, um livro de crônicas. Outro destaque é Raymundo Netto, que apesar de ter nascido em 1967, bem antes da maioria dos escritores citados como sendo da geração 00, teve seu primeiro livro, o romance "Um Conto no Passado: cadeiras na calçada", outro vencedor de edital estadual, em 2004. "Como a geração é baseada em quando começou a publicar (ele se encaixa)", justifica. O trabalho de Raymundo Netto se destaca pelas referências históricas que utiliza em suas ficções. "É uma novidade em termos de ficção", declara.
Bastante aclamado por Pedro, Dércio Braúna entra na lista dos poetas, destacando-se também por trabalhos acadêmicos sobre literatura. "Ele publicou um livro sobre Mia Couto e a cultura moçambicana. É um estudioso sobre cultura africana em língua portuguesa", descreve. E, ainda entre os poetas, ele cita diversos, como Webson Moura, Ayla Andrade, Mardônio França, proprietário da revista virtual e selo editorial Corsário. Também entre os poetas, Ylo Barroso, Manuel da Fonseca, editor da revista Pindaíba, e o Poeta de Meia Tigela. Este último, destacado por Salgueiro como, indubitavelmente, "um dos melhores dessa geração".
Por fim, ele cita Urik Paiva, "que não tem livros publicados, mas é um bom escritor, muito jovem", e Carlos Roberto Vazconcelos, que escreveu o livro de contos "Mundo dos Vivos".
Mariana Marques: autora do elogiado "Transatlântico" e conhecida por sua atuação na internetFOTO: RODRIGO CARVALHOGeração virtualProfessora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Ceará, Tércia Montenegro bateu na trave da Geração 00. Ela publicou o seu primeiro livro de contos "O Vendedor de Judas", em 1998. Tércia não arrisca muitos palpites, certa de que Pedro Salgueiro já teria citado quem também considera importante. Ela complementa, no entanto, a lista com os nomes de Tárcio Pinheiro, autor de "Janela Para o Caos", e Kelson Oliveira.
Tércia reforça a importância da popularização da internet como marco diferencial dessa geração. "Eles têm essa facilidade do suporte da internet, dos blogs, das redes sociais, a descoberta do nanoconto, através do Twitter", aponta. Para ela, apesar de ser utilizada por escritores de todas as gerações, a internet é assimilada com mais naturalidade pelos mais jovens. "Esses autores já nasceram com essa convivência. Coisa que, para nós, requer adaptação, conhecimento", avalia.
Ela destaca ainda que essa relação intima com a internet interfere na própria linguagem do grupo, tornando-a mais sincrética com as características da web. "A maioria já nasce impregnada disso. Mesmo que muitos não usem com frequência (a internet), mas são afetadas pela atmosfera da época", avalia. Tércia adverte, entretanto, que uma conclusão mais contundente sobre o assunto só poderia ser tomada com um estudo acadêmico. Esta é a constatação em primeira impressão.
O terceiro a nos guiar pelas letras do início do século é o escritor Jorge Pieiro. Ele participou das duas coletâneas Geração 90, de Nelson de Oliveira, e também coedita as revistas Caos Portátil. Apesar de considerar forçado o recorte proposto por Nelson, Pieiro dá dicas.
Anna K., Joyce Nunes, Mariana Marques e Natércia Pontes são os nomes que primeiro lhe vêm a mente, como destaques no conto. As quatro lançam em breve um livro coletivo com outros autores, entre os quais, o próprio Jorge, com narrativas sobre Fortaleza.
Ainda que compartilhe com Tércia a opinião de que esses novos escritores são marcados pela internet, Jorge alerta que isso não dá propriamente uma unidade, não cria um movimento para essa geração. "É apenas um condicionamento", ressalta. E como exemplo, ele cita ainda Airton Uchoa. "Estou lendo um romance que ele vai lançar, que é completamente diferente (do que é condicionado pela internet). Ele é verborrágico diante de uma situação que é concisa", revela.
A relação de novos talentos é extensa e este espaço curto. Como não poderia ficar de fora, completando nossa relação de 21 autores (à exemplo do livro de Nelson de Oliveira), citamos Sidney Rocha. Natural de Juazeiro do Norte e residente no Recife, Sidney é o único autor cearense que participa da coletânea dos Zero Zero. Ele publicou, em 2009, o livro de contos "Matriuska", pela editora Iluminuras. E que mais autores, outros bons escritores dessa geração, venham a nos contestar e ampliar este quadro.
A geração que faz o caminho inverso
Porta de entrada de dez entre dez novos escritores, a internet não tem quebrado o encanto das novas gerações como os velhos formatos do livro e das revistas
Se já da geração de 1990, Nelson de Oliveira compilou o livro "Geração 90: Manuscritos de Computador", na década seguinte, dos 00, à depender da tecnologia, os manuscritos estariam definitivamente digitalizados e o papel seria um mero capricho. O surgimento de inúmeros espaços virtuais para a literatura (que segue se multiplicando em sites, redes sociais, blogs, microblogs) facilitou a propagação de textos literários e o surgimento de inúmeros autores, dispersos em um amálgama confuso e volátil, onde muitas vezes não se sabe quem é o que, nem o que é de quem.
Diante desse caldo ciberespacial, percorrendo caminho inverso aos de 1990 (que migraram do impresso para a internet) os jovens escritores recorrem às mídias mais tradicionais em papel como jornais e revistas literárias, além do livro, como forma de se destacar e fixar seus nomes enquanto autores. Para Jorge Pieiro, que edita a revista Caos Portátil ao lado de Pedro Salgueiro, a tendência é que esses veículos ganhem novamente força após a euforia inicial da internet. "Estamos em uma fase de transição. Todos vão pensar ´esquece o livro, é tudo virtual´, mas acho que lá na frente volta. É o eterno retorno", defende.
Pedro Salgueiro calcula que entre 60% e 70% dos textos publicados na revista são de autoria de escritores que surgiram a partir do ano 2000. Apesar dos sites estarem em alta, os periódicos ainda mantêm sua função histórica de agrupar gerações escritores, a exemplo do jornal O Pão, jornal do grupo Padaria Espiritual, que marcou a virada do século XIX para o XX, a Revista Clã, editada nos anos 40 pelo grupo Clã, O saco, nos anos 70 e, à partir de 2005, a Caos Portátil. Pedro edita ainda a revista Para Mamíferos, ao lado de Glauco Sobreira, Nerilson Moreira, Tércia Montenegro e Jesus Iracy. Muitos jovens autores cearenses também recorrem ainda a publicações em veículos não especializados, no exemplo recente da extinta Revista Aldeota, de cunho jornalístico, além de editoras locais, no caso dos livros, como a La Barca e a recém criada Dedo de Moça.
Para Jorge, os textos publicados em revistas eletrônicas não suprem o desejo dos autores de ter seu texto impresso. A revista é, nesse sentido, uma maneira de amplificar o que antes era personalista, publicado em um blog ou site pessoal. A revista serviria como forma de reconhecimento junto ao meio literário. "Se fulano escreve na revista A, B ou C, então ele já tem um grau de importância. No livro ele diz ´Ah, agora estou imortalizado´", brinca, justificando que o mesmo sentimento não acontece com a publicação na web.
Outro ponto que ajuda a justificar o número crescente de publicações em papel é o barateamento do processo, fruto também do avanço tecnológico, e iniciativas públicas e privadas de custeio das publicações. "Os editais propiciam que todo mundo publique. Coisa que, nos anos 90, nós não tínhamos".
FÁBIO MARQUES
ESPECIAL PARA O CADERNO 3