Em entrevista ao Caderno 3, o controverso pesquisador José Ramos Tinhorão, cuja voz dissonante não poupa críticas à Bossa Nova e ao Tropicalismo, vem falar da trajetória da música afro no Brasil e no mundo. Tão polêmico quanto gentil, a conversa com o mestre em História Social, pela Universidade de São Paulo (USP), cuja primeira obra publicada, "A Província e o Naturalismo", de 1966, contempla a produção literária do Ceará do fim do século XIX, foi um mergulho na história que não está nos livrosJosé Ramos Tinhorão: "Quando os compositores de samba queriam gravar uma música feita com tema de terreiro, tinham que pedir permissão ao Babalaô" JEFFERSON COPPOLA/FOLHAPRESSOs autos e dramatizações de Coroação dos Reis do Congo até hoje são encenados em festas religiosas, principalmente, de Nossa Senhora do Rosário. Onde começa esse costume?Essa história de rei do Congo (hoje) é uma malandragem. Mas, veja bem, os povos africanos sempre foram ligados a danças coletivas simbólicas, algumas mágico-religiosas e outras implicavam a organização de suas embaixadas. Quando os portugueses ultrapassam a boca do Zaire, ou do Congo, e têm contato com os negros que estavam abaixo da Linha do Equador, que não sofreram influência árabe, vão conhecer que todos aqueles negros têm suas religiões. E isso é uma coisa importante de se observar. A África não é um país, a África é um continente e com mais de duas mil línguas. Essa coisa de falar "influência afro" é uma coisa tão vaga. Com o enfraquecimento do poder português, no tempo dos Filipes (1580 - 1640), começaram as rivalidades entre nações do Congo, que findaria com o reino em 1655. Havia muitas culturas africanas, por quilômetros de costa eles entravam em contato com comunidades completamente diferentes. Em primeiro lugar, a crença real deles era o culto aos antepassados, logo, os mais velhos eram as pessoas mais importantes, até porque, como não havia a linguagem escrita, a memória deles era a portadora da história. Além disso, as condições de vida eram ditadas pelas forças da natureza, tinha o cantar pelo despertar do dia, as danças que propiciavam boa colheita, o culto às águas, etc. Eles representavam sua realidade através de fatos dramáticos. O "mani geral" do Congo era a figura real, o sumo-sacerdote deles, e era escolhido em demonstrações de danças de guerras. Mas o português não estava interessado em chamar o mani Congo de rei. O que eles queriam era impor a religião e o sistema político europeu. Tanto que, em 1512, o rei português (D. Manuel), sob o disfarce da cristianização, busca moldar as instituições africanas às monarquias europeias. Assim, os reis africanos sagrados e escolhidos entre os descendentes da comunidade, com os portugueses, adotaram outro sistema que possibilitava a sucessão com eleição de um dos descendentes. Mas o Congo era uma confederação monárquica, com votos de nações e províncias, e isso originou a festa de distribuição de títulos hierárquicos, como conde, duque, barão, etc. Dessa forma, com as modificações de coroação dos manis, todos aqueles chefes que prestavam obediência ao rei do Congo, começam a disputar títulos e passam a ser conduzidos pelas crenças católicas. No final do século XIX, as antigas representações definitivamente desmembram-se em festas autônomas e folguedos, como os afoxés, na Bahia, os cambindas, na Paraíba, as taieiras, em Sergipe, os maracatus, no Recife, e os moçambiques, no Centro-Sul. Posso dizer isso com toda segurança, porque estou estudando isso para um livro que estou escrevendo nesse momento. Nunca existiu esse negócio de rei do Congo, de congada. O próprio negro acabou admitindo que os portugueses fizeram suas cabeças e transformaram em uma cultura sua.
E esse panteão de divindades que as religiões africanas trouxeram e cultuam até hoje?
O Candomblé, e outras religiões, é uma misturada só, não tem mais nada a ver com nada. Na verdade, os escravos que vieram não apenas para o Brasil, mas para os Estados Unidos, Antilhas, etc, eram negros capturados nas mais diversas regiões da África, gente que nem se entendia, nem falava a mesma língua. Não há cultura africana, há culturas africanas. Daí elas se misturaram todas no Brasil e dão um componente africano-brasileiro a culturas que se misturavam, também, com a cultura europeia e seu catolicismo. A realidade foi essa misturada. Se for ver, a maioria deles era da região de língua banto (grupo de cerca de 300 línguas semelhantes). Os primeiros bantos eram agricultores até conseguirem trabalhar o ferro, os ferreiros eram as pessoas mais importantes, tanto que o primeiro sacerdote da religião foi um ferreiro. Daí hoje você vê Ogum, (orixá) do Candomblé, com uma machadinha na mão. É o ferro, é o ferreiro! Ele representa um ascendente de todas as famílias dos bantos que eram ferreiros, os mais antigos, os que eram reverenciados por sua contribuição. Na verdade, a religião negra é uma religião da natureza. Eles reverenciam a fertilidade da Terra e a Terra não é de ninguém. A Terra é o lugar por onde passaram seus antepassados, as árvores, as águas, as cores, e nada disso pertence a eles.
Em comum, então, o que eles tinham era o batuque?Veja bem, batuque é um nome moderno, palavra usada genericamente. Muitas vezes, o que se chamava de batuque era uma cerimônia religiosa, noutras, apenas uma folgança, um divertimento, mas tudo eles chamavam batuque. Mas o que caracteriza a música africana é mesmo a percussão, o bater de palmas, dos tambores. Bem que já teve instrumentos de corda, e tem até hoje, mas a ênfase é sobre o ritmo. O que os africanos podem considerar, aí sim, uma contribuição real, é a percussão. Ora, os negros vêm para o Brasil e organizam sua religião com percussão. Então, você tem a parte das brincadeiras com percussão, que acontecem fora dos terreiros, e que vai acabar no samba. Mas, antes disso, teve a polca, o lundu, que eram também formas de brincar negro-brasileiras derivadas dessa coisa genérica chamada batuque.
É fato que o ritmo fado teria surgido aqui no Brasil?Por antiguidade, as referências mais antigas de danças daqui são: a fofa, o lundu e o fado. Há notícias históricas de danças com esses nomes desde o século 18, estão lá desde o Gregório de Matos. Por exemplo, a Colônia do Sacramento, hoje Uruguai... Os espanhóis estavam entrando em áreas que os antigos acordos diziam que seriam do Brasil. Então, precisava de gente para evitar a penetração espanhola, mas ninguém queria ir para lá. Daquela época, há um documento do governo de São Paulo, que diz: "tratem de mandar do Brasil mulheres do fado". E por que mulheres do fado? Porque estavam fora do âmbito familiar, porque se davam ao prazer de demonstrar o fado no meio de homens, o que era uma coisa totalmente fora dos padrões da sociedade da época, sempre com horror à vadiagem.
E o samba? Até chegar a ele, essa transição está ligada ao sagrado e profano?O que a gente chama de samba também é muito moderno. Foi aquela coisa que chamavam genericamente de batuque, a parte não religiosa, que passou a se chamar de samba. Samba era uma reunião festiva com percussão, um gênero musical que surgiu do exercício comunitário em rodas. Você já leu "Dona Guidinha do Poço?", livro de seu conterrâneo Manuel de Oliveira Paiva? Todo bom cearense tem que ler esse livro, é maravilhoso, maravilhoso! Ele descreve uma festa rural no Ceará do século XIX que é o samba, mas ainda não como gênero musical, como reunião nessas rodas. Esse livro é perfeito para entender muita coisa. Pois é, mas aí vem o século XX, o aparecimento do rádio gera o surgimento de profissionais que vão ganhar dinheiro com música. Quando o samba vai para o disco, quem compra não é marginalizado, quem compra, pode. Nas décadas de 1920, 1930, quem comprava disco era a classe média, até porque tinha que ter uma vitrola para tocar. Era um aparelho com manivela e tudo. Quando você diz que o primeiro samba gravado, "Pelo Telefone", foi de Donga (1890 - 1974), automaticamente está dizendo que ele é um objeto da era da indústria, não é só mais um ritmo da música negra, não, ele tem dono, é do Donga. Como seria depois na época dos famosos sambas do Estácio, Armando Marçal, que ficam famosos. Primeiro o disco, depois o rádio e a televisão, aí virou gênero de repercussão nacional, embora produzido fundamentalmente no Rio de Janeiro, ele se transmite para todo o País. Porque não é só um batuque de terreiro de Candomblé que você precisava ir ao terreiro para poder ouvir. Não. Ele é gravado, ele se nacionaliza.
Aqueles sambistas gravaram exaltações a divindades como faziam seus antepassados?Não, não. O samba comercial não tem nada mais que ver com isso aí. Pelo contrário, quando os compositores de samba queriam gravar uma música feita com base num tema de terreiro, tinham que ir ao terreiro pedir permissão ao Babalaô, e era feito, então, uma solenidade religiosa em que ele pedia permissão aos orixás para gravar aquilo num disco. Sabia disso? É... aconteceu muito. Por exemplo, um compositor de samba que compunha muita coisa de terreiro no Rio de Janeiro chamava-se J. B. de Carvalho (1901 - 1979), ele gravou muitas ideologias que chupava de música ritual de terreiros, isso na década de 1930. Antes de gravar, ele ia lá pedir permissão ao santo de cabeça, aí sim, autorizava gravar e tal.
E quando chega a geração de Baden Powell, Vinícius de Moraes, Paulo César Pinheiro?Aaah, não... Isso aí, minha amiga, quando chega Vinícius e Baden com esse negócio de afro... Era o seguinte, a verdade é essa: eles foram para a Bahia e criaram aquele "quando eu morrer, me enterrem na Lapinha", isso é o afro-samba, coisa de capoeira até de autor conhecido. Isso aí foi o oportunismo do homem da cidade, não tem seriedade nenhuma, é aquilo de "vamos explorar esse filão". Som afro! Que som afro? Que som afro é esse? Clara Nunes, Paulo Pinheiro, aquilo foi coisa para produzir disco e, na onda de som afro, vários compuseram dentro dessa linha, foi uma corrente dentro da produção de música brasileira que convencionou-se chamar de música afro. Daí veio o Caetano Veloso, com sua "Mãe Menininha do Gantois (cantuá)"... A própria música de Candomblé é uma criação de negro transportado para o Brasil que aqui funde numerosas formas da cultura e conhecimento da cultura africana e cria uma coisa nova, mas nada a ver com a África, a não ser pela forma de percussão. O resto é brasileiro. A música cubana tem muita influência dos terreiros, mas é diferente. E por quê? Porque Cuba era de colônia espanhola, mas os negros, que em princípio eram os mesmos trazidos para o Brasil, ganharam feições diferentes, o mesmo aconteceu no Sul dos Estados Unidos e, no entanto, eles vinham do mesmo Continente Africano. Essas feições locais foram oportunisticamente utilizadas. Som afro! Afro de onde? Afro de que região? Afro não é um país, a África é um continente. Mas leia o livro do Tinhorão "Os negros em Portugal - Uma presença silenciosa" (1988) que você vai entender muita coisa.
O senhor citou anteriormente o escritor cearense Manoel de Oliveira Paiva e, significativamente, um de seus primeiros livros, "A Província e o Naturalismo", de 1966, aborda a produção literária do Ceará no século XIX. Como é sua ligação com o Estado?
A rigor, a rigor, tudo isso surgiu pela minha admiração pelo escritor de "Dona Guidinha do Poço", Manuel de Oliveira Paiva, quando eu li aquele livro... Porque ele morreu em 1892 e deixou esse livro inédito em manuscritos, e esses originais vieram para o Rio de Janeiro, ficaram rodando de mão em mão de cearense. Em 1951, dona Lúcia Miguel Pereira, historiadora de literatura, leu quatro capítulos do livro que tinham sido publicados na Revista Brasil. Ela ficou louca, mas, e cadê o final do romance? E começou a procurar pelos jornais quem conhecia aquele cearense e tal, porque a revista tinha acabado. E se ela ficou deslumbrada, mais deslumbrado fiquei eu quando li, e botei uma coisa na cabeça: "pô, mas se o Ceará no século XIX, que só era conhecido no Sul por causa da seca, como é que produziu um escritor desses, em pleno fim de século?". Comecei a ler tudo e fui procurar conhecer a literatura cearense, comecei procurar, procurar...aí... Ah bom, tinham muitos. O Ceará tem uma coisa interessante: Fortaleza foi uma cidade de funcionários públicos, isso queria dizer que, pelo menos, tinham alguma escolaridade. Como o funcionalismo público na época tinha apenas cinco horas de trabalho, havia tempo para ler, escrever e dinheiro para comprar livros. Na verdade, o Ceará cria uma intelectualidade na classe média para baixa e, não tendo outra coisa para fazer, vai fazer política, veja o Jornal Libertador, engrena na luta contra a escravidão, e na literatura, haja vista a Revista Quinzena, onde, inclusive, Manuel de Oliveira Paiva publicou diversos contos, depois reunidos e transformados em livros. Aí nasce uma corrente literária, desde a chamada academia francesa, lá por volta de 1870, até a Padaria Espiritual, na virada do século XIX para o XX. Uma série de movimentos culturais fizeram o Ceará ombrear com o Maranhão, que já era famoso, mas o Maranhão fez fama indo para o Rio de Janeiro. Com o cearense foi interessante porque eles conseguiram formar uma geração literária de gente que não saía do Ceará. A cor local daqui é muito grande. Um ou outro veio para o Rio de Janeiro, mas, no geral, o Ceará teve vida literária própria. "A Província e o Naturalismo" foi uma série de artigos que fiz para o Jornal do Brasil, naquele entusiasmo de colher informações por causa da leitura de Dona Guidinha do Poço.
Naquela época, o Nelson Werneck Sodré (1911 - 1999) estava pesquisando para aquele livro dele "O Naturalismo no Brasil", começou a ver pelo JB um cara escrevendo sobre os movimentos literários no Ceará e começou a perguntar quem era. Ele que se empolgou para publicar o livro e ele mesmo fez a introdução. Mas tem um detalhe: quando o livro foi sair, em 1966, Nelson era militar, mas era contra o golpe que tinha sido em 1964, e eles ficaram com medo de publicar o livro de um iniciante, que era eu, apresentado por um militar, e deram o texto sem assinatura. Eu sou apresentado com um texto anônimo. Depois fiz um livro sobre Manuel de Oliveira Paiva. Ele foi aluno da Escola Militar do Rio de Janeiro, teve que abandonar devido a tuberculose, engrenei nesse caminho e me tornei especialista em literatura cearense. Fui até ao Ministério de Guerra e consegui a pasta do aluno Manuel de Oliveira Paiva, até com a provinha manuscrita que ele fez em Fortaleza para trazer para o Rio e se credenciar a uma vaga na Escola Militar. Descobri a vida dele toda na Praia Vermelha. O escritor colaborou com um jornalzinho chamado A Cruzada, publicou uma peça de teatro mirabolante, chamada "Tal filha, tal esposa", depois encontrei essa revista de forma milagrosa no Instituto Histórico.
O senhor é conhecido por seus estudos relativos à música e literatura brasileira, mas, também, por ser um das poucas vozes dissonantes no coro de louvor à Bossa Nova. Como essa versão da história é vista hoje?Eu analisei a Bossa Nova como um fenômeno e concluí que ela foi música americana montada no Brasil, entendeu? No meu livro, "Música Popular: um tema em debate", que está saindo agora a sétima edição, de não sei quantas reimpressões, é meu livro que mais vende. Nesse livro eu mostro, contemporaneamente, a Bossa Nova acontecendo e eu dizendo: "ó, esse negócio aí é a mesma coisa que automóvel brasileiro: não tem nacional não. É apenas montado no Brasil. Bossa Nova é "cool jazz" montado no Brasil. Aí pronto, caíram em cima de mim. Porque aquele pessoal todo era gente da alta classe média do Rio de Janeiro, gente da imprensa, até hoje sou malhado por causa disso. Mas não mexi uma vírgula do livro que sairá falando, mais uma vez, as coisas que falei naquela época. Agora, a perspectiva histórica faz com que, nessa releitura, muita gente que não participou, quando lê agora, pensa de forma diferente daqueles que malhavam naquela época. Mas não havia desafeto, eu achava o Tom Jobim até um bom sujeito, coitado, ele gostava dessas coisas de natureza, mas o que é que eu vou fazer? Eu descubro as coisas! Você tem internet? Pois pegue no You Tube uma música chamada "Mr. Monotony", gravada em 1942, nos Estados Unidos, por Judy Garland. Sabe o que você vai ouvir? O "Samba de uma nota só", do Tom Jobim. É só ver lá.
FIQUE POR DENTRO
Perfil
José Ramos Tinhorão, filho do comerciante Luiz Maria Ramos e Amélia Alves Ramos, nasceu em 7 de fevereiro de 1928, em Santos (SP), mas foi ainda criança para o Rio de Janeiro, onde teve seus primeiros contatos com a cultura popular brasileira. Conhecido também por seu vasto e valioso acervo, que inclui discos, partituras, livros, periódicos e imagens que perfilam a cultura brasileira, Tinhorão doou, no ano de 2000, toda sua coleção para o Instituto Moreira Salles, de São Paulo, onde está disponível para consulta.
NATERCIA ROCHA REPÓRTER