domingo, 27 de fevereiro de 2011

É o observador que completa a obra

Em texto pessoal e iconoclasta, a curadora de arte Dodora Guimarães defende que tanto há artesãos fazendo arte quanto grandes artistas fazendo artesanato, usando como exemplo o trabalho de Romero Britto
Foto: Divulgação

Dodora Guimarães
ESPECIAL PARA O POVO

Pra começo de conversa, tem muito artista fazendo artesanato e muito artesão fazendo arte. Exemplos? Francisco Cardoso em Brejo Santo, Maria do Socorro Cândido em Juazeiro do Norte, citando alguns, são grandes artistas, não obstante operarem na tradição do artesanato. Romero Britto, ao contrário, opera no mercado de arte, embora o seu exercício seja o artesanato – veja-se o caráter repetitivo de sua produção e o vazio que a contorna.

Não que o artesanato seja destituído de sentido, de forma alguma, pensemos nas mulheres de Atenas. O exemplo é apenas para lembrar que existem muitos artistas afamados que só repetem fórmulas. E arte é invenção. Invenção que pede atenção. Inclusive de público. Afinal, é o observador que completa a obra (de arte), como apontou Marcel Duchamp.

Outro bruxo moderno, o escritor cearense José Alcides Pinto, dizia que poesia é uma casa em pé, sem tijolos. Ou seja: a ideia da casa construída pela evidência do poeta. Independente de material ou suporte, de bula ou cartão de apresentação. Arte é o que nos pega pelo frio na barriga, o que arrepia.


Em dezembro de 2010 inauguramos no Sobrado Dr. José Lourenço uma bela exposição do artesanato tradicional do Ceará, focada em quatro polos trabalhados pelo Programa de valorização do artesanato tradicional (Promoart), empreendido pelo Ministério da Cultura, por meio do Museu do Folclore Edson Carneiro. Estavam ali representados a cerâmica de Moita Redonda – Cascavel; a areia colorida de Majorlândia – Aracati; labirinto de Morro Pintado e Ibicuitaba – Icapuí; e as artes de Juazeiro do Norte, concentradas no Centro de Cultura Mestre Noza. “Artes que Renovam a Tradição” intitulava essa mostra, que reunia um conjunto memorável do artesanato utilitário e criativo dos nossos mestres da atualidade.

Os retratos em garrafas de areia colorida de Lídio, as esculturas de Manoel Graciano, Francisco Cardoso, José Cordeiro e Raimundo Caetano, do mesmo modo que as placas de cerâmica pintada de Maria Cândido e de Maria de Lourdes Cândido reforçam o que escrevemos lá em cima, são pura arte. Maravilhas que podem conviver dignamente com obras de artistas de qualquer época ou lugar.

Coincidentemente e por uma causa justa (17 de janeiro - Dia do Ceará) realizamos no Sobrado Dr. José Lourenço uma exposição coletiva (Expô Relâmpago – Com o Ceará no Coração) de artistas da atualidade. Por força das circunstâncias as duas exposições ficaram frente-a-frente, compartilhando o mesmo espaço. Foi muito interessante ver este espelhamento. Ambas as exposições foram beneficiadas com o confronto.

Gosto de coisas corajosas. Aprecio sobremaneira os atos inaugurais. Em 1995, fizemos no Palácio da Abolição a exposição Universo Cariri, que abordava as diversas expressões artísticas feitas no Cariri ou de autoria de artistas da região. Foi enriquecedor ver o escultor Nino emparelhado com esculturas de Sérvulo Esmeraldo, Mestre Noza ao lado de Aldemir Martins etc. Essa exposição nos deu o norte para a mostra Admiráveis Belezas do Ceará ou o Desabusado Mundo da Cultura Popular, que, anos depois, inauguraria o Memorial da Cultura Cearense e o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. A primeira Bienal do Cariri (2001) e as quatro edições da Mostra Cariri tiveram esse mesmo caráter, avançado e transgressor. É isso, jamais descarto a perspectiva histórica.

Dodora Guimarães é formada em Comunicação Social, com Especialização em Teorias da Comunicação e Imagem, ambos pela UFC. Tem realizado, a partir de 1983, dezenas de exposições. Coautora do livro Ceará Feito a Mão.

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