sábado, 14 de maio de 2011

As proezas do cordel no estrangeiro

Um dos principais divulgadores da arte do cordel fora do País, o norte-americano Mark Curran, relança o panorâmico estudo "Retrato do Brasil em Cordel"


Ainda que faça parte, permanentemente, da paisagem cultural de boa parte do Brasil, o cordel é capaz de provocar estranhamentos. Se encanta seus leitores habituais por converter em literatura seu cotidiano e seus valores, um outro tipo de leitor vê nele uma aparição, como se o passado irrompesse o presente e abrisse passagem para tradições antiquíssimas da poesia popular. Não são poucos os exemplos de pesquisadores europeus que, por ele, quedaram-se encantados.

Remetia-os à Idade Média europeia, com seus personagens a promover a intercessão entre o oral e o impresso. Trovadores, jograis e outros artistas da palavra; e também as folhas volantes, que haviam levado o invento de Gutemberg para além dos círculos nobres e burgueses. O espanhol Jesús Martin Barbero e o suíço Paul Zumthor foram alguns dos leitores encantados - este, um afamado medievalista, autor de uma sólida antropologia da voz; aquele, um dos nomes mais destacados no estudo das comunicações nos últimos 20 anos.


O estranhamento é devolvido. Estrangeiros a conhecer algo que é tão nosso - e que nossa própria academia ainda não dá o devido reconhecimento. Contudo, se deste círculo europeu há muito se fala, o mesmo não se dá a respeito da repercussão do cordel nos EUA. Registro deste outro olhar, talvez ainda mais distante da realidade da literatura de folhetos, é o livro "Retratos do Brasil em Cordel", de Mark Curran, professor de língua e literatura portuguesa e brasileira da Arizona State University (EUA). O livro foi lançado originalmente em 1998, pela Editora da Universidade de São Paulo, e, desde então, estava fora de catálogo. O título volta às livrarias, em nova e ilustrada edição, pela Ateliê Editorial.

O encontro
Em entrevista, por e-mail ao Diário do Nordeste, Mark Curran confirma este estranhamento. "Não sou perito nisso, mas acho que a cultura dos EUA não tem nada igual à tradição do cordel", conta o autor. "Há ´chapbooks´ (pequenos folhetos, também ilustrados com gravuras, contendo contos populares, baladas, poemas, comum entre os séculos XVI e XIX) da Inglaterra e uns poucos nos EUA, mas nada que se compare à grandeza do cordel", avalia.

O que mais estaria próximo de nossa tradição poética, de fortes marcas orais, é exatamente a poesia da voz. "As baladas de Appalachia, no Leste, muitas delas de origem irlandesa. Ainda mais, as baladas do ´faroeste´ americano - canções de bandidos, de índios ferozes que defendiam suas terras e, mais, a tradição do vaqueiro americano, também acompanhado de seu cavalo corajoso. A balada ´The Strawberry Roan´ tem muito em comum com ´O Boi Mandingueiro e o Cavalo Misterioso´ (de Luiz da Costa Pinheiro) ou até ´O Boi Misterioso´ (de Leandro Gomes de Barros). Há um filme de faroeste que sempre aponto: ´Monty Walsh´ (no Brasil, ´Um Homem Difícil de Matar´), a primeira versão, com Lee Marvin. Uma das cenas mais impressionantes é a do vaqueiro Monty tentando domar um cavalo tão brabo, tão épico, que dá muito a recordar ´O Boi Misterioso´ do cordel", enumera o pesquisador.

Tipos móveis usados na impressão de cordéis no passado: a tradição adotou técnicas mais modernas
FOTO: ELIZÂNGELA SANTOS
Mark Curran lembra que seu primeiro encontro com a literatura de folhetos se deu em uma aula de literatura na Saint Louis University, St. Louis, Missouri, em 1965. Especialista na obra de Jorge Amado, a professora Doris Turner trouxe curiosos livrinhos artesanais para mostrar aos alunos do PhD. O aluno que teve a certeza de que aquilo era muito mais uma curiosidade acabou ganhando uma bolsa de estudo pela Fulbright. Fez sua pesquisa de campo no Brasil entre os anos de 1966 e 1967, para erigir uma tese sobre os pontos de contato da literatura popular em verso ("assim era conhecido o cordel daqueles dias") e literatura "erudita" brasileira. A cearense Rachel de Queiroz e o paraibano Ariano Suassuna foram alguns dos autores explorados neste estudo comparativo.

Traçando o mapa
De lá para cá, Curran já fez mais de 20 viagens ao Brasil, com roteiros cheios de proezas. "Um ano intenso de estudos em 1966-1967, leitura e pesquisa de campo através o Nordeste, a bacia do Rio São Francisco, a Feira Nordestina no Rio, Brasília e até em Belém do Pará e Manaus, no Amazonas, à cata de folhetos, romances de cordel, entrevistas com poetas e público. Foi isso o começo. Depois fiz mais de 20 viagens ao Brasil, sempre à cata do cordel", reconstitui o pesquisador.

O norte-americano se tornou dono de uma coleção "respeitável", adquirida em feiras, além de outro tanto copiado (por vezes manualmente), nos principais acervos de cordel do País, como aquele que pertence a Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

Foi através deste vasto material que Mark Curran estabeleceu um mapa, quase tão vasto, pelo qual passeia em seu livro. Aos invés de fazer uma história desta mídia da tradição popular, o autor encadeia núcleos temáticos. À maneira do xilógrafos, quando investe em obras mais extensas, com séries de gravuras, cada capítulo ganha o nome de álbum e traz tanto temas tradicionais como aparentemente incomuns, indo da religião popular à questões atuais de gênero.

Fique por dentro
A Voz do Verso
A francesa Martine Kunz caiu de amores pelo Brasil ainda nos anos 70, quando conheceu o Nordeste. Estudava clássicos de seu país, caso do poeta Charles Baudelaire e do romancista Marcel Proust, mas optou trilhar um novo caminho, o cordel. Professora da Universidade Federal do Ceará, Kunz é autora de obras consistentes sobre o tema, caso do breve e profundo "Cordel, A Voz do Verso", sexto volume da coleção Outras Histórias, no Museu do Ceará, e a antologia de poemas do poeta-jangadeiro Zé Melancia, editado pela Hedra.

Literatura
Retrato do Brasil em Cordel  
Mark Curran, Ateliê editorial, 2011, 368 páginas, R$ 70

DELLANO RIOS
 EDITOR

Fonte: Diário do Nordeste

Nenhum comentário: