FOTO: SHEYLA FONTES/DIVULGAÇÃO |
De menino com a saúde frágil, de vida difícil, a Doutor Honoris Causa em universidades Brasil afora, Patativa do Assaré é ave rara
Cedo da manhã, o café de dona Belinha cheirava no pano de coar, acordando a casa. Era a deixa para Antônio Gonçalves da Silva levar os nove filhos para a roça, onde ficariam até o cair da tarde. A vida pacata na serra de Santana fora a escolha daquele sertanejo típico, igual a muitos, não fosse um dom concedido a poucos: a habilidade com os versos.
Os filhos relembram com saudade os costumes de "senhorzinho", como era chamado: o apego com o trabalho no campo, o ciúme de suas poesias, a mania de falar sozinho. "A gente pensava que ele tava ficando doido", disse um familiar um dia, em entrevista ao jornal Diário do Nordeste, há cerca de dois anos. Mas o sertanejo estava longe da loucura. E, em meio as cadências da enxada, criou, entre outros muitos, "Triste partida", um de seus mais populares versos, musicado mais tarde por Luis Gonzaga. Esse era Antônio, que dos pais nasceu Gonçalves da Silva e da poesia, Patativa do Assaré.
Trajetória
Era 5 de março de 1909 quando nasceu o segundo filho de seu Pedro e de dona Maria, em uma pequena propriedade rural, no sertão do município de Assaré. A criança veio ao mundo saudável, mas não demorou para o sofrimento (segundo Patativa, necessário à vida de poeta) tornar-se seu compadre, companheiro de estrada. Aos quatro anos, um glaucoma privou-lhe da visão de um dos olhos. Pouco depois, aos oito, ficou órfão de pai, tendo que se juntar ao irmão mais velho na roça para sustentar a família. Fora por essa época que o menino Antônio, crescido entre a contação de histórias, as canções na viola e a literatura de cordel, trocou uma ovelha por uma viola. O instrumento tinha, mas para o destino ficar completo, faltava a instrução. E somente com 12 anos, frequentou a escola. A primeira e a única, na qual teve seis meses de estudo: tempo suficiente para aprender a ler e escrever.
Aí danou-se. Com 18 anos, mandou-se para o Pará, tentar a vida com os violeiros. Naquela época, os homens da viola eram apelidados de "patativas", passarinhos da cantoria. Depois da viagem, de volta as terras de Santana, estava consagrada a sina: o rapaz não era mais Antônio, era o Patativa do Assaré. Apesar do pouco estudo, Patativa leu Olavo Bilac, Castro Alves e Gonçalves Dias, e debatia com seriedade - e conhecimento de causa - sobre a arte de transformar palavras em poesia.
Até o começo da década de 50, Patativa pouco escrevia seus versos, guardando-os geralmente na memória. No entanto, ao ouvi-lo improvisando na Rádio Araripe, o latinista José Arraes de Alencar incentivou o poeta a organizar uma coleção. Ele mesmo viabilizou a publicação de "Inspiração Nordestina", seu primeiro livro, em 1956.
Foi quando, nesse mesmo período dos anos 50, momento de efervescência da poesia sertaneja no Ceará, desembarca em nossas paragens um europeu que, até então, achava que a ancestral "littérature de colportage", a literatura dos cordéis e os versos da tradição oral estavam fadados aos museus. Enganou-se, o homem. Raymond Cantel, professor francês da Universidade de Sorbonne, encontrou nos poetas nordestinos a epifania de um encontro com a História. Após a descoberta, o pesquisador fez diversas viagens ao Brasil e, numa delas, celebraria um de seus mais memoráveis encontros, com Patativa do Assaré.
Consagração
A obra do poeta se consagrou mesmo nos anos 70, quando já era apreciada pelos cordelistas do Cariri e os intelectuais de Fortaleza. Durante a década, o pesquisador J. Figueiredo Filho lançou por conta própria duas coletâneas dos versos de Patativa. A última, produzida já em 1978, tornou-se seu mais conhecido livro: "Cante lá que eu canto cá". Foi inclusive Figueiredo Filho quem serviu de ponte entre Raymond Cantel e Patativa do Assaré. Conversaram como puderam. O poeta lhe recitou uns versos e relembrou depois: "Ele foi o portador do meu livro Inspiração Nordestina lá na França. E esse livro, houve um estudo sobre esse livro... É o doutor Raimundo Cantel". Ainda sobre as entrelinhas do encontro que levou a obra do poeta à França, um dos grandes estudiosos de Patativa do Assaré no Ceará, Gilmar de Carvalho, escreveu as seguintes linhas em artigo: "Para homenagear a doação formal da coleção Cantel à Universidade de Poitiers, Martine Kunz viajou para lá, José Lourenço fez uma xilogravura e o registro de Patativa falando de Cantel foi gravado em CD. Lembranças e saudades se entrelaçam, tradição e novas tecnologias são apropriadas (a fotografia de Cantel para servir como referência do portrait, cortado em xilogravura, chegou de Poitiers pela Internet)".
O bom momento que representou os anos 70 foi, contudo, marcado por uma senhora agrura do destino. Um atropelamento na Avenida Duque de Caxias, em 1973, deixa Patativa acamado por onze meses em um hospital de Fortaleza. Quiseram-lhe amputar uma perna, consultaram-no, mas como ele mesmo disse, "deu contra". Viajou ao Rio de Janeiro, onde passou mais dois meses e lhe conseguiram uma perna mecânica.
A deficiência não lhe tirou a força. Agricultor que era, continuou seu trabalho nas plantações de milho, mandioca, algodão e feijão. Só não capinava terreno acidentado, o resto era como antigamente, ou até melhor. Segundo ele, a idade lhe havia concedido o privilégio de fazer as coisas "mais bem feitas" que os outros.
Velhice
A casinha de taipa na Serra de Santana, lugar da criação dos filhos e da sua própria, precisou ser abandonada. A velhice chegava, arrasando com o vigor do tempo a memória privilegiada do agricultor poeta, que falava sozinho ao soar da enxada. Que decorava suas linhas muito antes de passá-las para o papel. Mudou-se com a família para uma casinha perto da igreja matriz, aos 70 anos. Aos 91 anos, já com a saúde abalada por uma queda, o poeta dizia que não escrevia mais porque, ao longo de sua vida, já havia dito tudo o que tinha de dizer. Faleceu dois anos depois, em 8 de julho de 2002, ainda em Assaré.
Entre entrevistas, pesquisas e lançamentos de livros, disseram-lhe que se fosse para São Paulo teria vivido da poesia. Mas o poeta, além de Patativa, era Antônio, homem do campo, pai de seis homens e três mulheres, que escolheu nascer e morrer em Assaré, de onde provinha a inspiração de sua palavra. E o artista, que achava que o dinheiro sujava a arte, que se orgulhava de compartilhar sua poesia com seus colegas sertanejos tanto quanto de tê-las em livros, apesar de não ser um homem de letras, tornou-se doutor, certificado e tudo! Doutor Honoris Causa das universidades federal e estadual do Ceará e de mais duas instituições, em Sergipe e Rio Grande do Norte. Além disso, o poeta foi agraciado, em 2001, com o troféu Sereia de Ouro, do Sistema Verdes Mares.
Voou ave cantadeira, violeiro menino, poeta consagrado, artista estudado na França. Voou Patativa, o Antônio Gonçalves da Silva e de Assaré. Homem simples, do interior, que acreditava que para ser poeta não era preciso muita instrução, bastava "no mês de maio, recolher um poema em cada flor brotada nas árvores do meu sertão".
Bibliografia
Inspiração Nordestina: Cantos do Patativa (1956)
Cante Lá que Eu Canto Cá (1978)
Ispinho e Fulô (2005) (1988)
Balceiro. Patativa e Outros Poetas de Assaré (Org. com Geraldo Gonçalves de Alencar) (1991)
Cordéis (caixa com 13 folhetos) (1993)
Aqui Tem Coisa (2004) (1994)
Cordéis (1999) (Edições UFC)
Cordel (2000), organizado por Sylvie Debs
Biblioteca de Cordel: Patativa do Assaré (Org. Sylvie Debs) (2000);
Digo e Não Peço Segredo (Org. Guirlanda de Castro e Danielli de Bernardi) (2001);
Balceiro 2. Patativa e Outros Poetas de Assaré (Org. Geraldo Gonçalves de Alencar) (2001);
Ao pé da mesa (co-autoria com Geraldo Gonçalves de Alencar) (2001);
Balceiro 2: Patativa e outros poetas do Assaré (2001) (Secult/ Terceira Margem)
Balceiro 3: Patativa e outros poetas do Assaré (A Província Edições)
Antologia Poética (Org. Gilmar de Carvalho) (2002);
Cordéis e Outros Poemas (Org. Gilmar de Carvalho) (2008).
Patativa em Sol Maior (Gilmar de Carvalho) (2009)
MAYARA DE ARAÚJO
REPÓRTER
Cedo da manhã, o café de dona Belinha cheirava no pano de coar, acordando a casa. Era a deixa para Antônio Gonçalves da Silva levar os nove filhos para a roça, onde ficariam até o cair da tarde. A vida pacata na serra de Santana fora a escolha daquele sertanejo típico, igual a muitos, não fosse um dom concedido a poucos: a habilidade com os versos.
Os filhos relembram com saudade os costumes de "senhorzinho", como era chamado: o apego com o trabalho no campo, o ciúme de suas poesias, a mania de falar sozinho. "A gente pensava que ele tava ficando doido", disse um familiar um dia, em entrevista ao jornal Diário do Nordeste, há cerca de dois anos. Mas o sertanejo estava longe da loucura. E, em meio as cadências da enxada, criou, entre outros muitos, "Triste partida", um de seus mais populares versos, musicado mais tarde por Luis Gonzaga. Esse era Antônio, que dos pais nasceu Gonçalves da Silva e da poesia, Patativa do Assaré.
Trajetória
Era 5 de março de 1909 quando nasceu o segundo filho de seu Pedro e de dona Maria, em uma pequena propriedade rural, no sertão do município de Assaré. A criança veio ao mundo saudável, mas não demorou para o sofrimento (segundo Patativa, necessário à vida de poeta) tornar-se seu compadre, companheiro de estrada. Aos quatro anos, um glaucoma privou-lhe da visão de um dos olhos. Pouco depois, aos oito, ficou órfão de pai, tendo que se juntar ao irmão mais velho na roça para sustentar a família. Fora por essa época que o menino Antônio, crescido entre a contação de histórias, as canções na viola e a literatura de cordel, trocou uma ovelha por uma viola. O instrumento tinha, mas para o destino ficar completo, faltava a instrução. E somente com 12 anos, frequentou a escola. A primeira e a única, na qual teve seis meses de estudo: tempo suficiente para aprender a ler e escrever.
Aí danou-se. Com 18 anos, mandou-se para o Pará, tentar a vida com os violeiros. Naquela época, os homens da viola eram apelidados de "patativas", passarinhos da cantoria. Depois da viagem, de volta as terras de Santana, estava consagrada a sina: o rapaz não era mais Antônio, era o Patativa do Assaré. Apesar do pouco estudo, Patativa leu Olavo Bilac, Castro Alves e Gonçalves Dias, e debatia com seriedade - e conhecimento de causa - sobre a arte de transformar palavras em poesia.
Até o começo da década de 50, Patativa pouco escrevia seus versos, guardando-os geralmente na memória. No entanto, ao ouvi-lo improvisando na Rádio Araripe, o latinista José Arraes de Alencar incentivou o poeta a organizar uma coleção. Ele mesmo viabilizou a publicação de "Inspiração Nordestina", seu primeiro livro, em 1956.
Foi quando, nesse mesmo período dos anos 50, momento de efervescência da poesia sertaneja no Ceará, desembarca em nossas paragens um europeu que, até então, achava que a ancestral "littérature de colportage", a literatura dos cordéis e os versos da tradição oral estavam fadados aos museus. Enganou-se, o homem. Raymond Cantel, professor francês da Universidade de Sorbonne, encontrou nos poetas nordestinos a epifania de um encontro com a História. Após a descoberta, o pesquisador fez diversas viagens ao Brasil e, numa delas, celebraria um de seus mais memoráveis encontros, com Patativa do Assaré.
Consagração
A obra do poeta se consagrou mesmo nos anos 70, quando já era apreciada pelos cordelistas do Cariri e os intelectuais de Fortaleza. Durante a década, o pesquisador J. Figueiredo Filho lançou por conta própria duas coletâneas dos versos de Patativa. A última, produzida já em 1978, tornou-se seu mais conhecido livro: "Cante lá que eu canto cá". Foi inclusive Figueiredo Filho quem serviu de ponte entre Raymond Cantel e Patativa do Assaré. Conversaram como puderam. O poeta lhe recitou uns versos e relembrou depois: "Ele foi o portador do meu livro Inspiração Nordestina lá na França. E esse livro, houve um estudo sobre esse livro... É o doutor Raimundo Cantel". Ainda sobre as entrelinhas do encontro que levou a obra do poeta à França, um dos grandes estudiosos de Patativa do Assaré no Ceará, Gilmar de Carvalho, escreveu as seguintes linhas em artigo: "Para homenagear a doação formal da coleção Cantel à Universidade de Poitiers, Martine Kunz viajou para lá, José Lourenço fez uma xilogravura e o registro de Patativa falando de Cantel foi gravado em CD. Lembranças e saudades se entrelaçam, tradição e novas tecnologias são apropriadas (a fotografia de Cantel para servir como referência do portrait, cortado em xilogravura, chegou de Poitiers pela Internet)".
O bom momento que representou os anos 70 foi, contudo, marcado por uma senhora agrura do destino. Um atropelamento na Avenida Duque de Caxias, em 1973, deixa Patativa acamado por onze meses em um hospital de Fortaleza. Quiseram-lhe amputar uma perna, consultaram-no, mas como ele mesmo disse, "deu contra". Viajou ao Rio de Janeiro, onde passou mais dois meses e lhe conseguiram uma perna mecânica.
A deficiência não lhe tirou a força. Agricultor que era, continuou seu trabalho nas plantações de milho, mandioca, algodão e feijão. Só não capinava terreno acidentado, o resto era como antigamente, ou até melhor. Segundo ele, a idade lhe havia concedido o privilégio de fazer as coisas "mais bem feitas" que os outros.
Velhice
A casinha de taipa na Serra de Santana, lugar da criação dos filhos e da sua própria, precisou ser abandonada. A velhice chegava, arrasando com o vigor do tempo a memória privilegiada do agricultor poeta, que falava sozinho ao soar da enxada. Que decorava suas linhas muito antes de passá-las para o papel. Mudou-se com a família para uma casinha perto da igreja matriz, aos 70 anos. Aos 91 anos, já com a saúde abalada por uma queda, o poeta dizia que não escrevia mais porque, ao longo de sua vida, já havia dito tudo o que tinha de dizer. Faleceu dois anos depois, em 8 de julho de 2002, ainda em Assaré.
Entre entrevistas, pesquisas e lançamentos de livros, disseram-lhe que se fosse para São Paulo teria vivido da poesia. Mas o poeta, além de Patativa, era Antônio, homem do campo, pai de seis homens e três mulheres, que escolheu nascer e morrer em Assaré, de onde provinha a inspiração de sua palavra. E o artista, que achava que o dinheiro sujava a arte, que se orgulhava de compartilhar sua poesia com seus colegas sertanejos tanto quanto de tê-las em livros, apesar de não ser um homem de letras, tornou-se doutor, certificado e tudo! Doutor Honoris Causa das universidades federal e estadual do Ceará e de mais duas instituições, em Sergipe e Rio Grande do Norte. Além disso, o poeta foi agraciado, em 2001, com o troféu Sereia de Ouro, do Sistema Verdes Mares.
Voou ave cantadeira, violeiro menino, poeta consagrado, artista estudado na França. Voou Patativa, o Antônio Gonçalves da Silva e de Assaré. Homem simples, do interior, que acreditava que para ser poeta não era preciso muita instrução, bastava "no mês de maio, recolher um poema em cada flor brotada nas árvores do meu sertão".
Bibliografia
Inspiração Nordestina: Cantos do Patativa (1956)
Cante Lá que Eu Canto Cá (1978)
Ispinho e Fulô (2005) (1988)
Balceiro. Patativa e Outros Poetas de Assaré (Org. com Geraldo Gonçalves de Alencar) (1991)
Cordéis (caixa com 13 folhetos) (1993)
Aqui Tem Coisa (2004) (1994)
Cordéis (1999) (Edições UFC)
Cordel (2000), organizado por Sylvie Debs
Biblioteca de Cordel: Patativa do Assaré (Org. Sylvie Debs) (2000);
Digo e Não Peço Segredo (Org. Guirlanda de Castro e Danielli de Bernardi) (2001);
Balceiro 2. Patativa e Outros Poetas de Assaré (Org. Geraldo Gonçalves de Alencar) (2001);
Ao pé da mesa (co-autoria com Geraldo Gonçalves de Alencar) (2001);
Balceiro 2: Patativa e outros poetas do Assaré (2001) (Secult/ Terceira Margem)
Balceiro 3: Patativa e outros poetas do Assaré (A Província Edições)
Antologia Poética (Org. Gilmar de Carvalho) (2002);
Cordéis e Outros Poemas (Org. Gilmar de Carvalho) (2008).
Patativa em Sol Maior (Gilmar de Carvalho) (2009)
MAYARA DE ARAÚJO
REPÓRTER
Fonte: Diário do Nordeste
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