segunda-feira, 2 de maio de 2011

Assim contam os homens do mar

Quem vê seu João Teixeira Nery morando sossegado em uma ponta de praia, em Paracuru, não imagina que ele é sobrevivente do naufrágio ocorrido em 1972, que vitimou cinco, dos sete tripulantes

Há 39 anos, desde quando aconteceu o naufrágio do barco Alto Alegre, em Paracuru, o pescador João do Sapuriu não entra no mar. "Só vou até onde dá pé, mas entrar mesmo, não consigo. Desde aquele tempo até hoje, nunca mais"
FOTO: MARÍLIA CAMELO
Essa história que o Caderno 3 conta agora é dedicada ao mestre Dorival Caymmi (1914 - 2008), que, se vivo fosse, teria completado 97 anos no último dia 30 de abril. Além do natalício do comandante, 2011 também marca os 70 anos da canção "É doce morrer no mar", o poema-lamento feito em parceria com o amigo Jorge Amado, inspirado no romance "Mar Morto", uma das obras-primas do escritor baiano.

"É doce morrer no mar/ Nas ondas verdes do mar/ A noite que ele não veio foi/ Foi de tristeza para mim/ Saveiro voltou sozinho/ Triste noite foi para mim/ Saveiro partiu de noite e foi/ Madrugada não voltou/ O marinheiro bonito/ Sereia do mar levou/ Nas ondas verdes do mar meu bem/ Ele se foi afogar/ Fez sua cama de noivo/ No colo de Iemanjá/ É doce morrer..."

Essa nossa homenagem ao poeta do mar, vem na onda de um encontro com um dos sobreviventes do naufrágio ocorrido em 1972, no município de Paracuru, litoral oeste do Ceará, episódio quase esquecido na memória popular. O protagonista dessa história é seu João Teixeira Nery, pescador que desistiu do mar, mas que ainda mora em Paracuru, escondidinho, em uma beira de praia sossegada, tocando seu restaurante tranquilo e calmo.

Mas, naquele ano, antes de perder cinco companheiros de viagem em alto mar, o hoje senhor de 69 anos, de ombros largos e forte como um pescador em plena atividade, era chamado de Mestre João. Depois do acontecido, tudo mudou. Adotou a alcunha de João do Sapuriu, cujo significado só revela "em off" e, até hoje, 39 anos após a tragédia, nunca mais teve peito para enfrentar o mar.

"Eu também já fui do mar"
Era manhã do dia 24 de setembro de 1972, mês de ventos fortes no litoral cearense, quando o Alto Alegre, nome de batismo do novíssimo barco lagosteiro que fora lançado ao mar com pompas, champanhe, autoridades e circunstâncias, afundou. Ninguém podia conceber. Os mais experientes pescadores das redondezas convocados para se aventurar no Alto Alegre, tinham recebido o chamado como uma honraria.

 "Aquilo lá tava cheio de gente. Houve missa, quebraram champanhe, foi aquela festa! O dono era da família Meireles e colocou o nome do barco Alto Alegre, porque pegou o nome de Paracuru quando ainda era Vila. A condição do barco era boa, o dono botou água encanada, o comando do barco era todo de fórmica, tinha frigorífico, cabine, tudo. Naquela viagem, a gente ia pescar lagosta no nosso mar daqui ´premero´. A segunda viagem era para passar no mar do Maranhão, Pará, aqueles lado de lá", recorda seu João.

A ideia inicial do proprietário da moderna embarcação, que tinha investido a pequena fortuna de Cr$ 400 mil (cruzeiros) no barco que pesava 23,3 toneladas, media 14,7 metros de comprimento e tinha capacidade para armazenar, refrigeradas, algumas toneladas de lagostas, era que os marinheiros passassem três meses no mar.

Mas o destino havia planejado outra rota para a primeira viagem do barco Alto Alegre. Pouco tempo depois, quatro dos sete homens estariam mortos. Outros três nadariam aquela noite e ao longo de mais um dia. Um deles desistiu. Dois foram encontrados por uma jangada onde, apoiados no casco, conseguiram ser rebocados até terra firme.

"Nem Deus afunda o Alto Alegre"
Era cerca de seis horas da tarde quando os sete amigos: José Moisés Ferreira (José Alaor), João Jacinto de Souza, Francisco Teixeira Nery (irmão de João), Inácio Cláudio de Lima, Francisco Marques da Silva, Francisco Alcides Lima e João Teixeira Nery (os dois últimos conseguiram se salvar), suspenderam os trabalhos para dar atenção ao vazamento no motor que tinha aparecido na embarcação, que fazia sua primeira viagem. Os ventos eram fortes e o frio começava incomodar.

Mestre João lembra que estava sentado no beliche do barco, jantando, quando, de repente, tudo escureceu. "Em questão de segundos eu já estava vendo a quilha do barco. Foi de uma vez só, ninguém viu como aconteceu. Mas, lembro que quando o barco já estava emborcado, avistei uma luz que brilhou assim, na minha frente. Aí deduzi que podia ser a luz da porta de saída. E era! Consegui sair eu e mais dois, mas os outros pescadores (quatro) ficaram lá dentro", recorda triste.

Escuridão, frio, sol e sede
"Aquele vácuo de vento acabou com tudo e a gente começou a nadar. Um ia gritando o nome do outro, pra não se perder. Até que uma hora o Chico (Marques) disse que não aguentava mais. E a gente só viu foi ele afundando. Aí, eu e o Alcides fomos nadando, até que separamos de vez. Pensei que ele tinha morrido... Tempos depois avistei um bote, que já vinha com esse meu amigo em cima. Não deu para eu subir, era pequeno demais, mas eu fui apoiado na beirada e deu certo".

O barco foi rebocado no mesmo dia. Os corpos dos pescadores foram encontrados quatro, cinco, seis dias após a tragédia. Até então, nem comércios, nem escolas, nem jangadas, nada funcionou no lugarejo. Cada um, ao seu tempo, ia encalhando em praias próximas, elevando a tragédia à categoria de tortura.

"Os corpos dos cinco foram encontrados, mas o único que foi sepultado aqui foi o de meu irmão. Ele ficou ali, na Praia da Embuaca, depois de Flexeiras, a família toda tava procurando. Minha mãe quis porque quis levar ele para casa, teve que quebrar a porta por causa do tamanho que ele estava, mas demorou pouco dentro de casa. Os outros foram enterrados onde encalhavam", diz.

Já refeito do pesar, seu João revela uma recordação suave que aconteceu naquele ano. "Fui entrevistado pelo Augusto Borges, acho que era Canal 2, ele me mandou buscar de Kombi. Não gosto muito de entrevista, às vezes não fico à vontade, mas tô conversando aqui com o maior prazer. E teria muito gosto em falar com ele de novo. Quedê ele?"

Está aqui em Fortaleza, seu João, firme e forte, como ontem, hoje e sempre.

NATERCIA ROCHA
REPÓRTER

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