terça-feira, 6 de setembro de 2011

Um olho no cravo e outro na fechadura


O meu fascínio pela literatura fantástica tem origem, sem dúvida, na tradição oral que corria o Sertão numa época em que eu era menino e que a luz da Light se apagava às 22h em quase todas as pequenas cidades do interior do Nordeste brasileiro.

Aparelhos de televisão eram uma raridade, poucas famílias mais abastadas podiam acompanhar o que se passava no resto do Brasil. A nós, filhos de pobres,só nos restavam algumas brincadeiras que não necessitavam da claridade, mas o que verdadeiramente nos encantava era sentar na calçada, alpendre ou mesmo no meio da rua e abrir uma roda de contação de histórias.

Geralmente um adulto, não raro os mais velhos da vizinhança, iniciava logo uma narrativa de assombração, era a senha para que todos se calassem, apertassem a mão do irmão mais velho e grelassem os olhos na tentativa de enxergar a boca de onde saía os mesmos e velhos causos de cavalos correndo em roçados na madrugada, luzes em oiticicas de beira de rio, carnes sendo cortadas em mercados fechados, aparições e perseguições em ruas e veredas de nossa cidadezinha.

Minha mãe vivia brigando com meu pai por conta dos mil mal-assombros que incutia em nossas cabecinhas noite adentro. Iam deixar trauma nos meninos, dizia. Mas eles deixaram em nós foi um gosto pelo mistério que levamos pela vida afora. Já adulto, e em contato com a cultura letrada, era mais do que natural que gostasse de literatura fantástica.

Mas desenvolver esse gosto pelo gênero não foi tão fácil, porque raros eram os autores da dita “literatura séria” que o cultuavam. Há uma ou outra história perdida de alguns escritores românticos, pouquíssimas dos ditos realista-naturalistas e menos ainda dos modernistas. Mas com o tempo fui descobrindo narrativas fantásticas até no mais empertigado realista. Uma espécie de gênero minoritário, mas cultuado por quase todos os escritores.



Fui criando gosto de marcar os contos fantásticos encontrados em livros e coletâneas. Daí a vontade de juntá-los, de classificá-los, de estudá-los. Faltava-me um cabedal teórico, que aos poucos fui descobrindo e lendo mais como curioso e menos como estudioso sério. Das classificações sisudas de Todorov (que no centro de sua teoria apontava como definição única a hesitação entre o racional e o irracional, abrindo leque à direita para o estranho explicado e à esquerda para o maravilhoso, principalmente este, que nos levaria ao Realismo Mágico latino-americano) aos mais modernos dos estudiosos, fui percebendo que, assim como a literatura fantástica foi mudando com o passar do tempo, a tentativa de classificá-la, conceituá-la, também foi no rastro, se perdendo nas infinitas veredas deixadas pelo que os escritores iam produzindo.

Um dia, assistindo uma palestra na universidade, um professor discorria sobre as características marcadamente realistas de nossa literatura nordestina, devido ao clima quente da região, às eternas lutas do homem com a terra, os desafios da sobrevivência etc. e tal. Diante de tal quadro, prometi a mim mesmo que juntaria um número significativamente de textos fantásticos para contrapor a essa verdade tão aparentemente óbvia do seguro professor. Quase todos os livros que li depois desse episódio foram lidos com um olho no cravo do Diabo e o outro na fechadura do fantástico.

Para se conhecer a literatura fantástica em nosso país há que se ler autor por autor, catando contos e romances (e, tremei Todorov, até poesias) que se enquadrem no gênero, dialoguem e tangenciem com ele. Tarefa difícil, mas que poderia ser facilitada por coletâneas e antologias, que agregassem tais raras pérolas nos mais longínquos rincões desse nosso imenso país. Mas são raras, por que não dizer: raríssimas, as coletâneas, panoramas, antologias específicas do gênero que trazem textos de autores brasileiros.

Há alguns anos o escritor e compositor Bráulio Tavares, um dos raros estudiosos do gênero fantásticos que eu tenho conhecimento, veio a Fortaleza lançar sua ótima Página de sombras (digo ótima porque, diferentemente das coletâneas anteriores publicadas no Brasil, traz autores diferentes dos mesmos e já mais que sambados exemplos usados por outros antologistas, ao lado de nomes nunca antes apresentados em antologias e coletâneas, como Carlos Emílo Correa Lima, Berilo Neves, Heloísa Seixas e André Carneiro). Durante palestra no lançamento, Bráulio fez menção de dívida a duas outras coletâneas. Uma delas é Maravilhas do conto fantástico (Cultrix, 1958), organizada por Fernando Correia da Silva e com introdução e seleção de José Paulo Paes — que mais tarde também organiza e traduz Os buracos da máscara (São Paulo: Brasiliense, 1985), que inclui dois contos brasileiros, de Murilo Rubião e José J. Veiga. A outra é O conto fantástico (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959) com seleção, prefacio e notas de Jerônimo Teixeira, trazendo 26 histórias brasileiras dentro do gênero aqui abordado (na breve apresentação, Bráulio supõe ser esta reunião de Monteiro a primeira do Brasil na temática fantástica).

Não pensem que essa limitação bibliográfica se refere apenas ao gênero fantástico. Não, são pobres também as antologias, coletâneas e panoramas referentes a qualquer gênero no Brasil. Qualquer coleção de contos e poemas que entopem as livrarias neste início do século 21 traz lacunas e uma falta de abrangência inacreditáveis. Organizadores sem nenhum conhecimento do que se passa nos vários Estados brasileiros organizam irresponsavelmente os “Melhores Contos”, os “Melhores Poemas” sem critério algum, deixando de fora verdadeiros mestres de nossa literatura, que são penalizados simplesmente por residirem e publicarem em centros distantes da grande mídia (e das grandes editoras) ou mais distantes ainda do universo limitado de conhecimento dos tais organizadores; mestres do porte de um Moreira Campos, Gilvan Lemos, O. G. Rego de Carvalho, Hélio Pólvora, José Chagas, H. Dobal, Francisco Carvalho, Juarez Barroso, José Alcides Pinto, Jamil Sneje e uma enormidade de grandes outros escritores ficam de fora das referidas coletâneas, enquanto outros autores de obras e qualidade infinitamente inferiores estão lá.

PANORAMAS E ANTOLOGIAS LOCAIS

Para suprir e tentar evitar que isso aconteça (injustiças e omissões de grandes autores), pensamos em organizar um panorama do conto fantástico no meu Estado do Ceará, de literatura tão vasta e rica, porém quase desconhecida em seus pormenores pelo restante de brasileiros de outras plagas. Dos contos passamos para os capítulos de romances e até poemas, chegando a um inacreditável total de 207 peças: 130 histórias, 60 poemas (ou excertos) e 17 capítulos (ou fragmentos) de romances. Em tal empreitada contei com as valiosas colaborações de Sânzio de Azevedo (maior conhecedor da literatura cearense) e Alves de Aquino (poeta de valor da nova geração que desponta em nossas letras brasileiras).

Tenho corrido estados a lançar o livrão de quase 800 páginas que foi financiado pela Secretaria de Cultura do Ceará, em seu valioso programa de editais de literatura: Julho corremos as principais cidades do Estado, depois fomos para o Agosto das Letras de João Pessoa/PB, em setembro vamos lançá-lo na Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. Até o final do ano tentar correr (ou ao menos caminhar) Brasil afora.

Com esta ideia procurar sensibilizar outros apaixonados, estudiosos ou simples curiosos como eu, a organizarem cada vez mais obras coletivas em seus estados. Assim, quem sabe daqui a algum tempo, os limitados organizadores de antologias nacionais não tenham a desculpa do desconhecimento dos grandes autores de cada pedaço deste país quase continental.

ASSOMBRAÇÕES NO PENAMBUCO ANTIGO
Tenho em lugar especial de minha estante as três primeiras edições do extraordinário Assombrações do Recife Antigo, do mestre Gilberto Freyre, lembrança de quando morei em Recife no final da década de 1980 do século 20 e percorria quase diariamente os maravilhosos corredores da livraria Livro 7 e saía já de noitinha pelas ruas escuras do Recife Velho, embriagado pelos poemas de Augusto dos Anjos e assombrado pelos causos (no subtítulo Freyre os chama de “Algumas notas históricas e outras tantas folclóricas em torno do sobrenatural no passado recifense”) bem catalogados e melhor contados pelo mestre de Apipucos.

Quando Freyre, no seu “Prefácio à 2.ª edição”, diz que “este livro não pretende ser contribuição senão muito modesta para o estudo de um aspecto meio esquecido do passado recifense: aquele em que esse passado se vê tocado pelo sobrenatural. Pelo sobrenatural mais folclórico que erudito, sem exclusão, entretanto, do erudito.” ou ainda quando afirma que “Quando muito, acrescenta uma ou outra novidade, miúda, mas mesmo assim de algum interesse, à literatura ou ao folclore do sobrenatural do Brasil.” Ele Parece querer desafiar futuros estudiosos de outras áreas das artes, do teatro e das artes plásticas e da literatura de Pernambuco (e do cordel, e da música, e da...) a procurarem a presença de aspecto tão importante do imaginário de um povo que é o sobrenatural. Que teimoso e destemido estudioso fará o levantamento de poemas, contos e romances (e músicas, e gravuras, e cordéis, e...) nessa que é uma das mais ricas literaturas do Brasil, a Pernambucana?

Pedro Salgueiro é escritor e organizador de O cravo roxo do diabo - O conto fantástico no Ceará

Fonte: Suplemento Pernambuco

Nenhum comentário: