segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Príncipe da fotografia

Aos 44 anos, o fotógrafo Tiago Santana conversa sobre sua relação com o sertão cearense e sua maneira de compreender o mundo por meio de imagens 




Foto: Iana Soares
Para os amigos mais íntimos, ele é conhecido como o “príncipe da fotografia”, pela delicadeza do olhar, o belo semblante e a voz mansa. Para o circuito das artes, Tiago Santana, 44 anos, é hoje um dos principais fotógrafos em evidência não só no Ceará, mas no Brasil. Seus ensaios em preto e branco, de cenas fragmentadas, de gente do sertão, ganharam até repercussão mundo afora. As imagens de Tiago foram parar na mais recente edição da Photo Poche, famosa e tradicional publicação francesa, criada e dirigida por Robert Delpire (editor de grandes nomes da fotografia, como Henri Cartier-Bresson e Robert Frank). Apenas outro fotógrafo brasileiro chegou a publicar nesta coleção: o premiado Sebastião Salgado.

Natural do Crato, Tiago reconheceu no Cariri seu universo particular afetivo, que passou a ser capturado por meio de suas lentes. A relação com o sertão originou seus dois principais ensaios fotográficos, que renderam exposições e livros: Benditos (2000) e O Chão de Graciliano (2006). Na semana em que se comemorou o Dia Mundial da Fotografia (19 de agosto), Tiago Santana recebeu O POVO em seu escritório para uma conversa descontraída, em uma manhã de quarta-feira. Na entrevista, ele recorda sua infância, momentos da carreira, fala sobre a família e defende sua visão de mundo com base nas relações humanas.

O POVO - Você nasceu no Crato. De que forma o Cariri influenciou na sua formação?
Tiago Santana - Minha família nunca teve ligação com Juazeiro, a não ser minha avó que nasceu lá. Mas meu pai é de Quixeramobim e minha mãe nasceu em Fortaleza. Os dois se conheceram na universidade. Minha mãe como assistente social e meu pai na área de engenharia. Eles se casaram. Meu pai passou no concurso da Petrobras. Eles sempre foram muito ligados à militância política. Foram para a Bahia e foi lá que nasceu minha irmã Andréa (arquiteta). Só que chegando na Bahia, como meu pai continuou militando, ele foi demitido e teve que voltar para Fortaleza. Um amigo dele, João Parente, tinha um projeto na universidade para implantar empresas adaptadas à região. Estavam precisando de engenheiro no Cariri. Aí ele ficou 20 anos ali. Então, nasci eu, Camilo e Isabel. Eu brinco, mas foi a ditadura que me levou para Juazeiro (risos). Nasci lá por conta dessa história. Dei meus primeiros passos de vida lá, onde passei minha infância e adolescência. Só vim para Fortaleza na época do científico. Como você bem sabe, o Cariri é um lugar particular. Ali virou uma síntese do Nordeste. É uma mistura de gente, com uma riqueza cultural grande. Visualmente é fantástico e misterioso. Para uma criança, é algo que marca. É claro que havia a abertura dos meus pais para aquele universo. Não é só nascer ali, mas ter uma relação próxima com aquele lugar.

OP - Mas como foi sua primeira relação com a fotografia? Sei de uma história que você escondeu uma câmera do seu pai...
Tiago - E que enterrei? Nem sei como ele contou isso, porque na verdade eu nem tinha razão para enterrar a câmera (risos). Não sei se peguei e não pedi. Não lembro o que foi. Meu pai fotografava por hobby. Tinha um laboratório, ampliava. Além da relação com a imagem, ele tinha um Super 8. Meu pai ainda militava e fazia muitas reuniões com a comunidade. Para fazer uma apresentação, ele fazia filmes sobre associativismo em Super 8. Só que chovia de criança e eu levava outro projetor de Super 8 para exibir em paralelo filmes de desenho animado para as crianças. Aí comecei a fazer pequenos filmes. Ainda tenho alguns guardados... Além disso, tem outra relação familiar, que é o Zé Albano. Minha mãe só tem um irmão, o Everardo, que é casado com a irmã do Zé Albano, a Teresa. Desde pequeno, eu convivo com o Zé Albano, que sempre teve uma vida particular. Ele e o irmão Maurício tinham um estúdio na casa da mãe deles, perto da avenida Bezerra de Menezes. Lembro que visitava lá. Observava muito o trabalho dele, admirava a produção dele. A primeira foto que expus aprendi com o Zé Albano. Ainda tem outro momento decisivo. Morei um ano fora, nos Estados Unidos, e voltei a Fortaleza para estudar engenharia mecânica...

OP - Por que engenharia?
Tiago - Devido à influência do meu pai, que era engenheiro. Não pensava que a fotografia era algo que levasse para frente. Na época da engenharia, antes do Collor, tinha o Instituto Nacional de Fotografia, na Funarte, que organizava semanas nacionais de fotografia, que eram itinerantes. Houve um intercâmbio grande de fotógrafos. Foi onde conheci Miguel Chikaoka, de Belém, e todo um movimento que mapeava a fotografia no Brasil. Aqui em Fortaleza, boa parte do encontro aconteceu na Universidade Federal do Ceará. Dentro da engenharia, eu frequentava muito a arquitetura, por causa da minha irmã. Comecei a fotografar os projetos dos amigos dela. Percebi este encontro por acaso. Percebi que a fotografia, que era algo paralelo na minha vida, tinha uma importância enorme, que havia pessoas que refletiam sobre a fotografia. Era algo maior. Foi neste momento que abriu minha cabeça. Aí comecei a pesquisar e era uma época difícil, porque não tinha Internet. Fui para outros encontros de fotografia, abandonei a engenharia. É um curso que nunca terminei. Não existiam cursos de graduação na área de imagem. A formação da minha geração foi na oficinas dos encontros, pelos livros.

OP - A compra da primeira câmera profissional foi nesta época?
Tiago - Comprei uma Nikon FM2, que até hoje adoro. A partir do momento que decidi fazer fotografia, só tinha na minha cabeça o universo de Juazeiro. Queria documentar aquele lugar.

OP - Foi daí que nasceu o projeto do Benditos?
Tiago - Sim. O processo de construção do Benditos foi minha formação. Eu me amadureci como pessoa e fotógrafo, fazendo este projeto. Acredito que acertei no meu percurso, de pegar um projeto e mergulhar nele. Para quem está iniciando, é fundamental. Paralelamente eu continuava participando dos encontros, das oficinas. Durante o processo de oito anos do Benditos, não fiz nenhuma exposição. Eu compartilhava com os amigos, participava de exposições coletivas, mas não fazia exposição só minha. Meu objetivo era estar com o trabalho amadurecido a ponto de expor. Fiquei este tempo todo mergulhado neste universo de Juazeiro, que sempre foi muito fotografado. Era a tentativa de fazer algo, com uma relação mais intensa com o lugar e que não fosse foto-reportagem simplesmente. Alguém que tivesse ali compartilhando esta experiência de mistério, sem a intenção de questionar a figura do Padre Cícero, mas falar da relação das pessoas com o sagrado. Traduzir isto em fotografia. Em oito anos, imagina a quantidade de negativo que tenho! Quando você vai editar um trabalho, há vários caminhos que você pode seguir. A maior dificuldade do trabalho é editar, dar uma coerência a ele. O Benditos poderia ser algo mais documental, mas é algo que não entrega tudo e deixa uma certa margem para quem está olhando. Tem gente que diz que meu trabalho tem planos muito cortados, mas na verdade é algo intuitivo, que surgiu naturalmente.

OP - Foi aí que você descobriu um método ou um estilo próprio?
Tiago - Tem gente que olha para uma fotografia minha e vê isso. Dentro deste processo, tem outra figura importante: o Celso Oliveira, que era carioca e veio morar aqui. Aqui em Fortaleza, o que se tinha de fotografia era na publicidade. O Celso veio do jornalismo, chega no Ceará e mergulha na publicidade, porque era a forma de sobreviver. Ele conseguiu conciliar as duas coisas: fazer algo de mercado e algo mais pessoal e autoral. Foi aí que fiz a minha primeira exposição com ele, chamada Quem Somos Nós. O Celso me acompanhou muito no processo de Juazeiro, me ajudando a construir minha forma de ver. Se tem uma lógica que criei, acredito que não existe. Existe um processo de aprendizado e de troca. A fotografia não é só eu com minha câmera. Ali tem toda minha história, minha bagagem, a troca de experiências com outras pessoas. Existe a relação com meu universo e também a relação com o fotografado. Sou fotógrafo de gente. De certa forma, no início, foi uma busca de me comunicar. Sempre fui muito tímido. Hoje nem tanto, mas na época eu era. Quando tem o resultado de uma exposição, é fruto de um diálogo. É um compartilhamento de saberes, de ideias, onde brota um trabalho com força. Sempre fui uma pessoa ligada ao coletivo. Entrei inclusive numa seara de organização de encontros de fotografia. Sempre fui militante no pensar do coletivo. Meu aprendizado foi de compartilhar experiências. Tem esse lado de articular, de fazer pontes. Nos Benditos, fui mandando para editais, que possibilitaram viabilizar o trabalho. No início, achava que as fotos eram muito gráficas, frias, talvez por causa da influência da arquitetura. Fui mudando para algo mais humano, emotivo. Na medida em que você vai amadurecendo, encontrei uma forma de ter uma linguagem própria, com densidade.

OP - Sobre este aspecto humano, não só de Benditos como de O Chão de Graciliano, como acontece sua relação com as pessoas fotografadas, já que são processos que duraram anos para serem feitos?
Tiago - A câmera me ajudou muito no processo de chegar perto, mas nunca usei uma teleobjetiva. Nada contra, mas a pessoa olha e já percebe logo o tamanho da lente. As pessoas endeusam o equipamento. O Miguel Chikaoka desmistificou o equipamento fotográfico para mim. Você pode fazer uma foto boa até mesmo com uma pinhole, uma latinha com papel dentro. O fundamental é sua relação com o olhar, em pensar o trabalho. O equipamento é um acessório importante, até porque fotografia tem a ver com a técnica, mas tem que ser deixado em segundo plano. A relação está mais além. É o chegar no outro. Sou um fotógrafo muito discreto, por conta da timidez. E no interior, há um acolhimento muito grande. O fato de você estar ali interagindo com eles, interessado na vida deles... No fundo, uso a câmera para contar histórias minhas e da relação com o outro. Só tem sentido essa relação se for em duas vias. Não é chegar logo de repente. Sempre fui muito cuidadoso com isso, uso equipamento pequeno, discreto e tento construir diálogo com outro, inclusive de respeito. Tem que ser recebido e se deixar ser recebido. Há momentos em que fico e nem fotografo. Acho que é mais importante esta relação do que o resultado. É estranho um fotógrafo dizendo isso, mas é verdade! (risos) Esta troca é tão forte que a fotografia não dá conta. Aqui acolá sai uma foto perto disso. Se a gente pudesse ter uma câmera no olho – do jeito que tá daqui a pouco vamos ter isso – seria melhor e menos invasivo. Às vezes, nem fotografo. Fico horas conversando, tomando café. Acho que a coisa flui. Lembro de cenas em que fotografava e aí surgiam coisas: uma mulher trazia um papagaio.... Começa a construção de uma cena, que não foi você que pediu, mas que foi acontecendo. Tem horas que parece um transe. No processo dos Benditos, a romaria era um lugar de profusão, as imagens aconteciam e você tinha que ter sensibilidade para capturar aquilo. Sou um cara que fotografo muito.

OP - Você demora muito para fazer uma imagem ou depende da situação?
Tiago - Eu fotografo muito. É intuitivo e, às vezes, nem sei o que fiz direito e vou olhar em outro momento. Às vezes, nem sei o que fiz. Na medida em que você se envolve, isso muda um pouco. Um trabalho que tem força é aquele que você se entrega e se coloca. Não é porque tenho uma marca, mas um envolvimento, uma coerência de conjunto. Acredito que quando um autor se entrega a um trabalho, ele ganha personalidade e força. Meu trabalho é analógico. Tenho um pouco de digital, mas gosto mais de analógico. Não por preconceito com o digital, mas porque parece que, com o digital, me falta alguma coisa. Pode ser bobagem, mas é do processo. Nasci numa época do analógico. A relação com o filme é muito próxima. Aprendi a editar só olhando para o negativo. Quando você bate o olho no desenho, a imagem logo se destaca. É inevitável. Acho que era o Cartier-Bresson que dizia: “se você quer ver uma foto boa, olhe de cabeça para baixo”. É para ver se ela funciona (risos). Tenho uma relação física com a foto. Adoro o negativo.

OP - Dentro do contexto atual onde cada vez mais imagens são produzidas e se perdem, qual o compromisso da fotografia?
Tiago - Tentar pensar e refletir mais sobre essa produção. Quais imagens estão circulando? Esse é o papel do fotógrafo de hoje. O que vai ficar é pouco. Mas vão ficar coisas que vão construir nosso imaginário e vão dar conta do que vivemos. O fotógrafo tem responsabilidade de refletir sobre isso. Não é fácil, porque estamos em um momento de complexidade grande. Mas aí é que está o poder do fotógrafo, ou melhor, sua responsabilidade. De não jogar estas imagens à toa, de pensar sobre elas. 

PERFIL

Tiago Santana nasceu em 7 de setembro de 1966, no Crato. É filho do ex-deputado estadual Eudoro Santana e da assistente social Hemengarda Santana. Seus irmãos são a arquiteta Andréa Santana, o secretário de Cidades do Estado, Camilo Santana, e Isabel Santana, que é editora. Com os fotógrafos Celso Oliveira e Tibico Brasil, Tiago fundou a Editora Tempo d’Imagem, em 1994. Ele já foi contemplado com a Bolsa Vitae de Arte, em 1994, e com o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, pela Funarte, no ano seguinte. Em 2008 e 2009, foi o ganhador do prêmio O Melhor da Fotografia no Brasil, como fotógrafo documentarista. No ano passado, recebeu o Prêmio Porto Seguro Brasil de Fotografia. É casado com a psicóloga Luciana Lobo e tem dois filhos - João, 13; e Maria, 10.

AS FOTOGRAFIAS EM ENSAIOS

Benditos (2000)
Durante oito anos, Tiago Santana fotografou Juazeiro do Norte, seu povo, as romarias, o lugar onde viveu Padre Cícero. O resultado é presente em 70 fotos, que dimensionam o universo dos fiéis e sua relação com o sagrado.


O Chão de Graciliano (2006)
Com textos do jornalista Audálio Dantas, o ensaio homenageia a vida e a obra do escritor Graciliano Ramos, a partir de imagens que remontam seu universo criativo. É o resultado de várias viagens ao sertão de Alagoas e Pernambuco, para o ensaio fotográfico feito para a exposição homônima.


Patativa do Assaré: O Sertão Dentro de Mim (2010)
A vida e o imaginário do poeta cearense Patativa do Assaré são dimensionados pelas fotos de Tiago e os textos do pesquisador Gilmar de Carvalho. No prefácio, o escritor Xico Sá vaticina que Patativa é o “Guimarães Rosa da poesia”, pela eficácia em traduzir o sertão em palavras.


Sertão (2011)
Dentro da famosa coleção francesa Photo Poche, o livro abrange 71 fotografias realizadas por Tiago Santana entre 1992 e 2006. Com esta publicação, o trabalho de Tiago é reconhecido internacionalmente e ele é o segundo fotógrafo brasileiro, depois de Sebastião Salgado, a publicar nesta importante coleção.
1989

ESTREIA
É o ano em que Tiago Santana começou sua carreira como fotógrafo

70

OBRA
É o número de fotos que fazem parte do ensaio do livro Benditos

O primeiro contato com Tiago Santana para as Páginas Azuis foi feito numa segunda, dia 15 de agosto. O celular do fotógrafo estava fora da área de cobertura. Uma ligação à casa dele constatou: Tiago tinha viajado para Icapuí para comemorar o dia dos pais com os filhos e esticou a viagem no feriadão de Nossa Senhora da Assunção.

Com o celular desligado, o convite foi feito por e-mail. A entrevista foi marcada para as nove horas de quarta-feira (17 de agosto). No dia anterior, Tiago abriu no Centro Cultural Banco do Nordeste a exposição coletiva Correspondências Visuais, em parceria com os fotógrafos Marcelo Brodsky, da Argentina, e Cássio Vasconcelos, de São Paulo.

No horário marcado, Tiago abre a porta do escritório, com olhar tímido. Mas logo o gelo é quebrado ao perceber que a repórter estava acompanhada da fotógrafa Iana Soares, que ele já conhecia de longa data. “Que surpresa boa!”, confessou.

O escritório de Tiago Santana é repleto de suas fotografias ampliadas em preto e branco. Durante a entrevista, ele serviu café e água para a equipe. Cada pergunta era respondida com calma, sem pressa para terminar. Algumas digressões o faziam esquecer das perguntas, que eram prontamente retomadas pela repórter.

Ao final da entrevista, Iana pergunta se Tiago é religioso. Ele responde: “Não sei. Talvez. Mais por causa da minha relação com as pessoas do sertão, que acreditam no sagrado. Mas não sou devoto”.

Durante as sessões de foto que ilustram esta entrevista, Tiago demonstrou desconforto diante da teleobjetiva de Iana. “É estranho ser fotografado”, soltou.

Camila Vieira
camilavieira@opovo.com.br

Fonte: O Povo

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