segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tudo o que não é realismo

O lançamento da coletânea O Cravo Roxo do Diabo: contos fantásticos no Ceará chama a atenção para nossa tradição literária fantástica e o cenário da produção contemporânea


O escritor Pedro Salgueiro anda receoso, empregando extrema perícia em atividades aparentemente simples, tais como atravessar uma rua. Nas últimas semanas, pequenos contratempos têm se encarrilhado de forma sinistra. Não se podem descrever precisamente as engrenagens que articulam seus efeitos, mas tudo indica que a publicação de seu último livro, no qual assume o humilde posto de organizador, está por trás dos tenebrosos fatos.

Primeiro, ele havia contado 170 textos selecionados para integrar a obra, uma coletânea de contos fantásticos de escritores cearenses, do século XIX até os dias atuais. Outras pessoas autenticam a idoneidade dos números. Ao finalizar o arquivo, não mais do que 130 foram contabilizados. Outro dia desses, os mil exemplares do calhamaço de quase 700 páginas já estavam encadernados na gráfica quando um desvio da norma foi detectado, o inominável havia baldeado a lógica do software de última geração responsável pela coincidência entre as páginas do livro e as indicações do sumário.

“Por precaução, eu não estou mais nem chamando o livro de... só de O Cravo Roxo”, confidencia Pedro Salgueiro. O título do livro pode guardar o motor desses sobressaltos dos últimos tempos.

O Cravo Roxo do Diabo, de Álvaro Martins (1868-1906), foi um dos primeiros contos a serem pesquisados para a coletânea de contos fantásticos cearenses. No entanto, resistiu a todas as tentativas de lhe quebrarem o encanto. Não estava em nenhuma das bibliotecas particulares visitadas, eminentes bibliófilos não souberam de seu paradeiro. Apesar de ser mencionado na História da Literatura Cearense, de Dollor Barreira, integrando um dos volumes da revista Iracema, do Centro Literário, que circulou em 1895, justo o número da coleção estava ausente das estantes da Biblioteca Nacional.

Depois de três anos de busca, o conto – não encontrado – dá título à coletânea. O Cravo Roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará será lançado na próxima quarta-feira (1°/6), dentro da programação do projeto Bazar das Letras, no Sesc Iracema, reunindo, além de mais de uma centena de contos, 17 trechos de romances e 60 poemas. A pesquisa é a maior jamais feita sobre o gênero na literatura cearense e contou com a ajuda de Alves de Aquino, o Poeta de Meia-Tigela, e o professor do Departamento de Letras da Universidade Federal do Ceará, Sânzio de Azevedo. O projeto foi patrocinado pela Secretaria Estadual de Cultura através de edital.

“Um dos meus primeiros desafios foi a questão de que a literatura do Nordeste, do Ceará em específico, é realista. Por conta da força da luta do homem com a terra, com o clima, se convencionou isso. Quando eu fui lendo, fui vendo que não era bem assim. Acho que é predominantemente isso, mas tem muito mais”, considera o organizador. O volume de textos coletados não deixa dúvidas, aponta para a possibilidade de se incrementar a tradição de uma literatura fantástica no estado e mesmo no país.

Na coletânea estão desde escritores cearenses formados no século XIX ou da primeira metade do XX, a exemplo de Juvenal Galeno, Oliveira Paiva, João Clímaco Bezerra, Rachel de Queiroz, Moreira Campos, até contemporâneos como Gilmar de Carvalho, Ronaldo Correia de Brito, Ana Miranda, Jorge Pieiro e Demitri Túlio. Destaque especial para José Alcides Pinto, talvez o que mais abrigou o fantástico em sua obra e figura na coletânea com o conto A Imaginada e um trecho do romance Os Verdes Abutres da Colina (1974). A linhagem da literatura fantástica cearense é analisada a seguir em artigo de Nilto Maciel.


SERVIÇO

Lançamento O Cravo Roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará
Quando: dia 1º de junho, às 19 horas
Onde: Sesc/Senac Iracema (Rua Boris, 90 – Dragão do Mar)
Quanto: R$ 30 (o livro)

Pedro Rocha
pedrorocha@opovo.com.br

Fonte: O Povo

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