Pajé Luís Caboclo diz que além de ter dia certo para preparar o lambedor, o cuidado com a extração das ervas é essencial
Tanto do mar quando do sertão, os povos continuam a prática de aliar os benefícios das ervas medicinais à fé para cura de enfermidade
Caucaia. "Pai-Tupã nos dai força/ Para nós aqui lutar/ Fazer esse lambedor/ E o doente vir curar". Lambedor é que nem feijão com arroz. Um bom preparo faz toda a diferença. Cacique Pequena, índia jenipapo-kanindé, de Aquiraz, diz que é preciso pensar coisas boas. Ou seja, não basta colocar na panela, tem que saber porque está colocando. Os índios da praia e os sertanejos do semiárido aliam o conhecimento fármaco das ervas medicinais e a posição dos astros ao poder da oração na cura dos enfermos. Fazem remédios de tudo o que a natureza pode oferecer. E "oferecer" aqui inclui no sentido da própria vontade da natureza. "O homem tem que pensar junto com ela, nunca separado", diz pajé Luís Caboclo, índio Tremembé. Com pensamento na cura, ciência e sagrado se aliam com um mesmo objetivo: saúde.
A diferença entre a água comum e a "água benta" é o quanto de intenção que se deposita ali. A antropologia explica com a cultura. A ciência metafísica chama de poder da mente, as culturas dos povos chamam de fé. É o que defendem as rezadeiras, benzedeiras e os guias espirituais indígenas. "Tem gente de Fortaleza que vem para a Encantada só fazer a ´meizinha´. O menino do doutor ´tava´ muito gripado, fiz um litro de mel lambedor", diz cacique Pequena. Um lambedor poderoso precisa ter raiz de vassourinha (nome científico Scoparia dulcis), campim-santo (Cymbopogon citratus Stapf), alho (Allium sativum) e outros produtos da natureza também conhecidos como mastruz, cidreira, eucalipto etc.
Cacique Pequena passa para seu povo as receitas de lambedores que vem passando entre gerações. A oficina aconteceu durante o I Encontro Sesc de Povos do Mar, em agosto
FOTO: MELQUÍADES JÚNIOR
Existe mistura para o combate a vários tipos de doença. "Mas se você não botar fé, aquilo ali num vai valer de nada", esclarece. Segundo a índia, o remédio é um conjunto de forças. "A energia já vem na planta. E eu vou fazendo o mel e pensando nas orações ao pai-tupã. E depende das energias também de quem está ao redor, pessoas que pensem o contrário das coisas boas, podem atrapalhar, a gente tem que ser mais forte". Fora da linguagem indígena, pai-tupã pode ser resumido a "Deus", na cultura dos povos o maior criador de todas as coisas. A dona de casa Maria da Penha, da comunidade de Pacheco, em Caucaia, dividiu a preparação de um lambedor com a cacique Pequena. As duas mulheres participavam do Encontro dos Povos do Mar promovido pelo Sesc na Praia de Iparana, em Caucaia. "A gente não faz orações, só fica com o pensamento bom quando ´tá´ fazendo", diz Maria da Penha.
E se o ser humano é apenas um ponto minúsculo em um gigante universo, os populares que fazem preparos com as ervas medicinais (e especialmente os índios) apontam a interferência dos astros, dos planetas e da lua na concepção do remédio. O cacique João Venâncio, da etnia Tremembé, em Almofala, Município de Itarema, diz que não tem uma receita de plantas medicinais que, ao ser preparada, deixe de levar em conta a "linguagem do céu". Os Incas, povo que vivia entre Peru e Chile antes da invasão dos espanhóis, só faziam o plantio com a orientação dos astros. Bem antes deles, estiveram os egípcios e os hebreus (há mais de quatro mil anos). A diferença entre essas práticas que fundem ciência e sagrado é que hoje estão muitas vezes relegadas ao plano das expressões culturais das comunidades.
Projeto
Mas na Universidade Federal do Ceará (UFC) é desenvolvido o projeto "Astronomia agrícola aplicada à agricultura orgânica", já tema de reportagem no Caderno Regional no ano de 2008. O projeto foi criado sob a coordenação do professor doutor em Bioquímica Vegetal, João Batista Freitas.
De acordo com o estudioso, o plantio em diferentes fases da lua pode provocar alterações nas plantas, desde a quantidade de folhas, frutos, altura do vegetal e sua maior fixação ou não no solo. Dessa forma que, segundo o professor, a aproximação da lua pode gerar efeitos negativos na agricultura, assim como o plantio, quando a lua estiver longe, pode causar uma melhor fixação no solo. Esse acompanhamento ajudaria no controle de pragas. A astronomia agrícola estuda o comportamento dos astros e sua relação no desenvolvimento das plantas. Os povos indígenas e sertanejos não se apropriam do termo, mas usam o conhecimento. (MJ)
MAIS INFORMAÇÕES
Astronomia Agrícola aplicada à Agricultura Orgânica
Universidade Federal do Ceará
(85) 3366.9613 / 3366.9713
ERVAS MEDICINAIS
Ancestralidade fortalecida
Enquanto preparam lambedores, garrafadas e méis, índios Tremembé repassam cultura ancestral
Almofala. Para cada doença, uma ou mais ervas. Para todo e qualquer mal, uma natureza inteira oferecendo uma ou várias soluções. É com esse pensamento que os índios Tremembé, do distrito de Itarema, em Almofala (zona norte do Ceará) indicam os mais diversos remédios para os doentes que pedem uma "sugestão". A sabedoria popular é repassada aos mais novos, e ganha legitimidade (e continuação) a cada "remédio" tomado e doença "expurgada". A medicina popular tenta não entrar em conflito com a medicina convencional. Os índios repercutem para as pessoas que os procuram como eles próprios fazem para acabar o mal no corpo.
"No nosso organismo temos um ´vermezin´ que briga contra a doença. A doença tem uns ´microbiozin´ que entram e brigam com a gente. Todos temos um câncer, só muda que em algumas pessoas ele uma hora fica mais forte que os nossos ´vermezin´, aí acaba instalando a doença", explica o pajé Luís Caboclo, guia espiritual dos índios Tremembé.
Ele defende a boa convivência com a natureza como uma forma de o homem conseguir dela o que deseja. O pajé tem 60 anos e se gaba de ser saudável. "Eu não me troco por um cabra novinho, não. A mulher até hoje ainda tem ciúmes", brinca, sobre sua "juventude".
Cultura oral
Mas a transmissão do conhecimento pela oralidade é repercutida não só nas gerações de pajés. De tanto resolverem por si só muitas doenças que os assolam, os Tremembé já sabem o que fazer quando bate uma tosse com secreção no peito. Correm para o verde, catam as folhas "certas" e preparam chás e méis. O cacique João Venâncio deu a este repórter uma receita para gripe, "daquelas que tosse mas o catarro não sai": bater três ovos de galinha caipira com casca e tudo em um vaso com 15 limões cortados e espremidos. Em seguida colocar um pouco de mel de abelha e deixar em banho-maria por três dias "no sereno". "Fica tomando uma colher de manhã, outra meio dia e mais uma à noite", explica. Se a gripe for de muito tempo, recomenda repetir a receita oito vezes, e não deixar de tomar um só dia, para não "quebrar" o efeito.
Receitas diferentes
O cacique diz que são várias as receitas, para cada pessoa, idade e nível de doença. "Tem que ver o momento certo de preparar, não é qualquer dia. Se a maré estiver rasante não pode", conta.
O cuidado se repete com a forma de extrair folha das plantas. "Tem que ter cuidado para não estressar a planta. Tem muita coisa que a gente pode conseguir na natureza sem precisar pagar", afirma o cacique, referindo-se aos remédios na farmácia que, segundo ele, fazem a dor passar, "mas não tira a dor de dentro do corpo da gente, ela ainda está ali".
O pajé Luís Caboclo, que é, por lei Estadual, Mestre da Cultura Popular Tradicional do Ceará, ressalta que a natureza tudo oferece, e cabe ao homem oferecer amor.
"Quando nós não ´fala´, as pedras falam", retruca ele que quando prepara os remédios diz ter contato espiritual com os "encantados". (MJ)
MELQUÍADES JÚNIOR
REPÓRTER
Tanto do mar quando do sertão, os povos continuam a prática de aliar os benefícios das ervas medicinais à fé para cura de enfermidade
Caucaia. "Pai-Tupã nos dai força/ Para nós aqui lutar/ Fazer esse lambedor/ E o doente vir curar". Lambedor é que nem feijão com arroz. Um bom preparo faz toda a diferença. Cacique Pequena, índia jenipapo-kanindé, de Aquiraz, diz que é preciso pensar coisas boas. Ou seja, não basta colocar na panela, tem que saber porque está colocando. Os índios da praia e os sertanejos do semiárido aliam o conhecimento fármaco das ervas medicinais e a posição dos astros ao poder da oração na cura dos enfermos. Fazem remédios de tudo o que a natureza pode oferecer. E "oferecer" aqui inclui no sentido da própria vontade da natureza. "O homem tem que pensar junto com ela, nunca separado", diz pajé Luís Caboclo, índio Tremembé. Com pensamento na cura, ciência e sagrado se aliam com um mesmo objetivo: saúde.
A diferença entre a água comum e a "água benta" é o quanto de intenção que se deposita ali. A antropologia explica com a cultura. A ciência metafísica chama de poder da mente, as culturas dos povos chamam de fé. É o que defendem as rezadeiras, benzedeiras e os guias espirituais indígenas. "Tem gente de Fortaleza que vem para a Encantada só fazer a ´meizinha´. O menino do doutor ´tava´ muito gripado, fiz um litro de mel lambedor", diz cacique Pequena. Um lambedor poderoso precisa ter raiz de vassourinha (nome científico Scoparia dulcis), campim-santo (Cymbopogon citratus Stapf), alho (Allium sativum) e outros produtos da natureza também conhecidos como mastruz, cidreira, eucalipto etc.
Cacique Pequena passa para seu povo as receitas de lambedores que vem passando entre gerações. A oficina aconteceu durante o I Encontro Sesc de Povos do Mar, em agosto
FOTO: MELQUÍADES JÚNIOR
Existe mistura para o combate a vários tipos de doença. "Mas se você não botar fé, aquilo ali num vai valer de nada", esclarece. Segundo a índia, o remédio é um conjunto de forças. "A energia já vem na planta. E eu vou fazendo o mel e pensando nas orações ao pai-tupã. E depende das energias também de quem está ao redor, pessoas que pensem o contrário das coisas boas, podem atrapalhar, a gente tem que ser mais forte". Fora da linguagem indígena, pai-tupã pode ser resumido a "Deus", na cultura dos povos o maior criador de todas as coisas. A dona de casa Maria da Penha, da comunidade de Pacheco, em Caucaia, dividiu a preparação de um lambedor com a cacique Pequena. As duas mulheres participavam do Encontro dos Povos do Mar promovido pelo Sesc na Praia de Iparana, em Caucaia. "A gente não faz orações, só fica com o pensamento bom quando ´tá´ fazendo", diz Maria da Penha.
E se o ser humano é apenas um ponto minúsculo em um gigante universo, os populares que fazem preparos com as ervas medicinais (e especialmente os índios) apontam a interferência dos astros, dos planetas e da lua na concepção do remédio. O cacique João Venâncio, da etnia Tremembé, em Almofala, Município de Itarema, diz que não tem uma receita de plantas medicinais que, ao ser preparada, deixe de levar em conta a "linguagem do céu". Os Incas, povo que vivia entre Peru e Chile antes da invasão dos espanhóis, só faziam o plantio com a orientação dos astros. Bem antes deles, estiveram os egípcios e os hebreus (há mais de quatro mil anos). A diferença entre essas práticas que fundem ciência e sagrado é que hoje estão muitas vezes relegadas ao plano das expressões culturais das comunidades.
Projeto
Mas na Universidade Federal do Ceará (UFC) é desenvolvido o projeto "Astronomia agrícola aplicada à agricultura orgânica", já tema de reportagem no Caderno Regional no ano de 2008. O projeto foi criado sob a coordenação do professor doutor em Bioquímica Vegetal, João Batista Freitas.
De acordo com o estudioso, o plantio em diferentes fases da lua pode provocar alterações nas plantas, desde a quantidade de folhas, frutos, altura do vegetal e sua maior fixação ou não no solo. Dessa forma que, segundo o professor, a aproximação da lua pode gerar efeitos negativos na agricultura, assim como o plantio, quando a lua estiver longe, pode causar uma melhor fixação no solo. Esse acompanhamento ajudaria no controle de pragas. A astronomia agrícola estuda o comportamento dos astros e sua relação no desenvolvimento das plantas. Os povos indígenas e sertanejos não se apropriam do termo, mas usam o conhecimento. (MJ)
MAIS INFORMAÇÕES
Astronomia Agrícola aplicada à Agricultura Orgânica
Universidade Federal do Ceará
(85) 3366.9613 / 3366.9713
ERVAS MEDICINAIS
Ancestralidade fortalecida
Enquanto preparam lambedores, garrafadas e méis, índios Tremembé repassam cultura ancestral
Almofala. Para cada doença, uma ou mais ervas. Para todo e qualquer mal, uma natureza inteira oferecendo uma ou várias soluções. É com esse pensamento que os índios Tremembé, do distrito de Itarema, em Almofala (zona norte do Ceará) indicam os mais diversos remédios para os doentes que pedem uma "sugestão". A sabedoria popular é repassada aos mais novos, e ganha legitimidade (e continuação) a cada "remédio" tomado e doença "expurgada". A medicina popular tenta não entrar em conflito com a medicina convencional. Os índios repercutem para as pessoas que os procuram como eles próprios fazem para acabar o mal no corpo.
"No nosso organismo temos um ´vermezin´ que briga contra a doença. A doença tem uns ´microbiozin´ que entram e brigam com a gente. Todos temos um câncer, só muda que em algumas pessoas ele uma hora fica mais forte que os nossos ´vermezin´, aí acaba instalando a doença", explica o pajé Luís Caboclo, guia espiritual dos índios Tremembé.
Ele defende a boa convivência com a natureza como uma forma de o homem conseguir dela o que deseja. O pajé tem 60 anos e se gaba de ser saudável. "Eu não me troco por um cabra novinho, não. A mulher até hoje ainda tem ciúmes", brinca, sobre sua "juventude".
Cultura oral
Mas a transmissão do conhecimento pela oralidade é repercutida não só nas gerações de pajés. De tanto resolverem por si só muitas doenças que os assolam, os Tremembé já sabem o que fazer quando bate uma tosse com secreção no peito. Correm para o verde, catam as folhas "certas" e preparam chás e méis. O cacique João Venâncio deu a este repórter uma receita para gripe, "daquelas que tosse mas o catarro não sai": bater três ovos de galinha caipira com casca e tudo em um vaso com 15 limões cortados e espremidos. Em seguida colocar um pouco de mel de abelha e deixar em banho-maria por três dias "no sereno". "Fica tomando uma colher de manhã, outra meio dia e mais uma à noite", explica. Se a gripe for de muito tempo, recomenda repetir a receita oito vezes, e não deixar de tomar um só dia, para não "quebrar" o efeito.
Receitas diferentes
O cacique diz que são várias as receitas, para cada pessoa, idade e nível de doença. "Tem que ver o momento certo de preparar, não é qualquer dia. Se a maré estiver rasante não pode", conta.
O cuidado se repete com a forma de extrair folha das plantas. "Tem que ter cuidado para não estressar a planta. Tem muita coisa que a gente pode conseguir na natureza sem precisar pagar", afirma o cacique, referindo-se aos remédios na farmácia que, segundo ele, fazem a dor passar, "mas não tira a dor de dentro do corpo da gente, ela ainda está ali".
O pajé Luís Caboclo, que é, por lei Estadual, Mestre da Cultura Popular Tradicional do Ceará, ressalta que a natureza tudo oferece, e cabe ao homem oferecer amor.
"Quando nós não ´fala´, as pedras falam", retruca ele que quando prepara os remédios diz ter contato espiritual com os "encantados". (MJ)
MELQUÍADES JÚNIOR
REPÓRTER
Fonte: Diário do Nordeste
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