Trabalhamos demais. Atropelamos as relações e deixamos de cuidar dos sentimentos. Excedemos o limite do consumismo e embriagados pelo desejo do mais, ignoramos as tantas coisas boas da vida, como tomar um café com a grande amiga, no meio do dia. E assim, nesta vida louca, de poucas horas, de correria exagerada, de pressa e pressão, cobrança e prazo, penso que nos acorrentamos ao mundo do trabalho.
Por isso, ultimamente, venho me dedicando mais às coisas boas da vida, que são subjetivas, sim, mas na essência são sempre traduzidas no fazer o que gostamos com quem amamos.
Gosto das palavras, do seu poder e das suas múltiplas formas de expressão: escrita, interpretada, discursada, cantada ou encenada. Esse gostar me fez lembrar Rachel de Queiroz no ensaio aberto de Élida Marques interpretando sua obra, num delicioso café, cheio de arte, no meio do dia. Aliás, não posso deixar de dizer que a arte nos humaniza; por isso é essencial, ela abre a mente e nos permite emoção.
Rachel não queria escrever sua autobiografia, mas, seduzida pela afetividade da irmã, quase filha, de certo alma gêmea, escreveu sua história de forma encantadora... Tantos Anos esteve comigo e como um milagre ou coincidência, como prefiram, no mesmo dia em que fechei a última página do livro, a autora fechou os olhos para a vida, em 04 de novembro de 2003.
E morreu silenciosamente, feito a revolução que travou na literatura brasileira. Ela, a primeira mulher a conquistar a imortalidade na Academia Brasileira de Letras, escreveu a história do nosso país. E abriu caminhos: com fibra, coragem, e determinação - talvez, como ela própria tenha dito, características não suas, mas inerentes à juventude – enfrentou políticos, sistemas e cartéis. Sempre em nome da ética e da cidadania. E não foi em vão, sua obra revela a legitimidade da consciência política, cultural e intelectual com que se dedicou ao mundo das letras. Assim é seu livro de memórias: mais do que sua história, Tantos Anos conta a história do nosso Brasil e da nossa gente. Uma interpretação genuína do sertão seco do Ceará, num jeito leve e sedutor de invadir lembranças, suscitar sentimentos e marcar história.
Preocupada com o papel da mulher na sociedade moderna, Rachel rasgou preconceitos e cavou seu espaço (...) e de todas as que vieram depois dela. Hoje, quando gozamos dos diretos adquiridos, profissional ou maternalmente, bem pouco nos lembramos do caminho trilhado: uma longa história escrita, a punho, por bravas mulheres.
Mas, o motivo gerador destas poucas palavras não se encontra na tentativa estúpida de mais uma homenagem pós-morte - gesto hipócrita de lavar a consciência e pedir desculpas pelas faltas em vida – e sim, no intenso significado da sua obra, que conserva o poder histórico nas palavras escritas, que eterniza a possibilidade do aprender sempre e que conforta a alma dos brasileiros que choram o descaso cultural do seu país.
Um país que não aprendeu a valorizar seus escritores e intelectuais e que, por isso, não registra nas memórias do seu povo a lembrança de ter lido seus livros nos bancos escolares. Desde muito tempo, os livros didáticos trazem os resumos das obras dos nossos escritores, como se isso bastasse. São poucas as escolas que possibilitam o contato com a obra: os resumos são mais rápidos e fáceis. O trabalho diminui e o aprendizado também.
Afinal, num país com pressa, de ações imediatistas, por que perder tempo com leituras? Por que lembrar Rachel, Drummond ou Machado de Assis?
por Mércia Falcini
por Mércia Falcini
Psicopedagoga com Especialização em Formação de Professores e Sistema de Gestão. Atualmente é Diretora da Consultoria e Assessoria Saberes, Consultora da Fundação Pitágoras e colunista do site Itu.com.br.
Fonte: Itu.com.br
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