O contista e cronista Pedro Salgueiro reme- mora a história do gênero no Ceará. Entre os muitos que se debruçaram sobre os fatos e paisagens do nosso Estado, destacam-se Milton Dias, Ciro Colares e Rachel de Queiroz
O escritor Pedro Salgueiro é autor de cinco livros, entre eles quatro de contos e um de crônica: "Fortaleza Voadora"
Ao encontro de um traço único da crônica cearense, não posso dizer que tenha tido muito sucesso. O formato das crônicas e o modo como e onde nascem parecem não mudar muito de lugar para lugar. A única diferença (não menos preciosa, no entanto) é o fato de que reconhecemos bem de que fala o cronista, quando não conhecemos a ele próprio, pessoalmente, relação que confere as suas palavras outro tempero.
No Ceará, são nossas paisagens, ruas e fatos que estão no foco das lentes literária sempre a postos dos cronistas. Fala-se de algo de nossa pertença. E quem, desde jovem, aprendeu a ler Fortaleza pelas linhas dos cronistas semanais foi o escritor e também cronista Pedro Salgueiro. Por meio dele e de suas memórias, iniciamos esse passeio pelos sujeitos que dão cor à crônica da terrinha.
Lirismo
Quando jovem, dos nomes rememorados por Pedro Salgueiro, o primeiro que vêm à lembrança é o daquele considerado o maior cronista da história do Ceará: Milton Dias (1919-1983).
Nascido em Ipu, Milton descobriu ainda no colégio sua vocação para a escrita. Quando adulto, dividiu-se entre dois amores, a língua materna e o francês, que estudou por muitos anos na própria França. Já no Ceará, tornou-se professor de Língua e Literatura Francesa na Universidade Federal do Ceará (UFC). Mas se a pesquisa e a docência lhe impulsionavam ao idioma estrangeiro, as crônicas lhe traziam de volta ao seio de sua terra. Livros como "Relembranças" e "As Cunhãs" revelam seu trato com o bom português. "Milton era cheio de lirismo. Lembrava a escrita de Rubem Braga algumas vezes", rememora Salgueiro.
Desta mesma época, o escritor lembra ainda outro nome, aliás, pouco conhecido por suas crônicas: Moreira Campos. Também professor de Letras na UFC e sócio-fundador do movimento literário conhecido por Grupo Clã, do qual Milton Dias fez parte, Moreira foi muito mais condecorado por seus contos do que por sua crônica e poesia. "Algumas pessoas dedicam-se a pesquisar Moreira Campos no Ceará, mas não conheço quem tenha estudado esta vertente de cronista, muito menos a de poeta, já que ele só lançou um livro do gênero", comenta.
Ímpares
Agora, a figura ímpar, imprescindível ao se falar do gênero no Ceará é certamente Ciro Colares. O jornalista forjou-se inicialmente entre as máquinas do Correio do Ceará, onde trabalhava o pai. Aos 18 anos, ingressou no jornal, mas como revisor. Apenas em 1946 começou a escrever e, desde então, foram 60 anos de jornalismo. Entre tantas produções, foi colunista também do Diário do Nordeste, integrando o Caderno 3 aos domingos, no fim dos anos 90.
"O Ciro é um sujeito à parte mesmo, por que é muito importante. O modo como ele se referia a Fortaleza era único, ele conseguiu escrever crônicas atemporais ainda que tratassem de acontecimentos factuais. Ele tinha uma escrita de que eu gostava muito, pois lembrava o Manuel Bandeira cronista. De excelente qualidade", reforça Pedro.
De fato, a escrita de Ciro Colares, registrada em 17 livros de crônica, se destacou pelo carinho com que tratava de Fortaleza, escrita em tal estilo que lembrava muito mais uma poesia.
Aqui, criou personagens como as sereias que dizia existir nos mares da Capital, a qual batizou Fortalezamada. Recentemente, a memória de Ciro foi preservada em livro, escrito pela jornalista Lucíola Limaverde: "Ciro Colares: a crônica paixão por Fortaleza".
Além do talento de encontrar e criar personagens, o cronista é aquele possuidor da dileta virtude de se tornar personagem e, nesse sentido, Airton Monte, ainda hoje, tem sido um mestre.
Ele, esposo devoto de Sônia, a quem chama de "santa" (porque será?); ele, que em seus textos revelou o gosto por andar nu pela casa; ele, psiquiatra, que confessou morrer de medo de médicos; ele que teorizou: "Há mais vantagens em viver sozinho do que usar o banheiro com a porta aberta". A trajetória do escritor também foi repassada no livro-reportagem "Airton no divã - várias faces do boêmio", da jornalista Anamélia Sampaio Farias.
Em termos de visibilidade, contudo, um nome entre os cearenses desta seara se destaca: certamente Rachel de Queiroz. Uma das poucas mulheres citadas entre os muitos homens adeptos do gênero, Rachel fez uma porção de leitores da revista "O Cruzeiro" começarem a leitura pelo fim, já que suas crônicas iam publicadas na última página do periódico.
Muito antes, no entanto, de tornar-se escritora exclusiva da revista carioca, Rachel havia sido cronista de jornais como Correio da Manhã e Diário da Tarde, e, ainda antes, colunista de O Ceará, onde começou, muito nova, sob o pseudônimo Rita de Queluz. Entre seus trabalhos, constam pelo menos 14 livros de crônica.
"Comparando a crônica cearense com a de outros estados creio que não há muita diferença. Nossos temas são parecidos, o que muda mesmo é o estilo. Rachel tinha um jeito único de conversar com o leitor. Alguns são mais líricos, como já citei, outros preferem tratar do cotidiano, como o jornalista Gervásio de Paula, do Diário do Nordeste, que gosto muito. Já outros são mais cerebrais, mais densos como Ana Miranda, que escreve verdadeiros tratados, com muita pesquisa e informações", relaciona o escritor.
Contemporâneos
Segundo Pedro Salgueiro, que figura entre os cronistas cearenses contemporâneos, a popularização dos blogs na internet tem surtido efeito também na produção literária cearense. "Além dos jornais, acompanho também muitos blogs de escritores que postam quase que diariamente. Eles tem rendido, sim, bons escritores de crônica", afirma.
Entre eles, Pedro cita o blog Literatura Sem Fronteiras, de Nilto Maciel literaturasemfronteiras.blogspot.com). "O Nilto tem um modo interessante de fazer crônica porque, muitas vezes, faz uso de seu estilo para fazer uma resenha de livro, por exemplo. Ele cria um personagem fictício e começa a debater com ele, iniciando uma conversa sobre o certo título...", comenta. Além de Nilto, uma leva de outros bons cronistas vem sendo composta, entre outros, por Raymundo Netto, Flávio Paiva (também do Diário do Nordeste) e Tércia Montenegro, todos vez em quando papeando em nossos jornais.
Fique por dentro
Crônica N° 1*
Tanto neste nosso jogo de ler e escrever, leitor amigo, como em qualquer outro jogo, o melhor é sempre obedecer às regras. Comecemos portanto obedecendo às da cortesia, que são as primeiras, e nos apresentemos um ao outro. Imagine que pretendendo ser permanente a página que hoje se inaugura, nem eu nem você, - os responsáveis por ela, - nos conhecermos direito. É que os diretores de revista, quando organizam as suas seções, fazem como os chefes de casa real arrumando os casamentos dinásticos: tratam noivado e celebram matrimônio à revelia dos interessados, que só se vão defrontar cara a cara na hora decisiva do "enfim sós".
Cá estamos também os dois no nosso "enfim sós" - e ambos, como é natural, meio desajeitados, meio carecidos de assunto: Comecemos pois a falar de você, que é tema mais interessante do que eu.
*Crônica de estreia de Rachel de Queiroz na revista "O Cruzeiro"
Amar uma cidade*
Amar uma cidade parece estranho, ela não tem diálogo, ela não tem sexo pra despertar pensamentos eróticos, mas às vezes se ama até mesmo um beco, o que parece ser uma bobagem, e o que é o amor senão uma bobagem?
uma ingenuidade ocasional, um desvio ou descarrilamento da razão?
Não se ama com a cabeça, ama-se sem saber porque, ama-se quase acidentalmente.
As cidades não são apenas os problemas do mostruário,
o ônibus cheio, a criança sem pão, o desastre inevitável,
uma cidade pode ser também aquela moça que está nua no supermercado,
a gente se aproxima e a ilusão se dissipa dentro de nossas lentes de grau, uma cidade pode ser esse momento de utopia.
*Trecho de Ciro Colares
MAYARA DE ARAÚJO
REPÓRTER
O escritor Pedro Salgueiro é autor de cinco livros, entre eles quatro de contos e um de crônica: "Fortaleza Voadora"
Ao encontro de um traço único da crônica cearense, não posso dizer que tenha tido muito sucesso. O formato das crônicas e o modo como e onde nascem parecem não mudar muito de lugar para lugar. A única diferença (não menos preciosa, no entanto) é o fato de que reconhecemos bem de que fala o cronista, quando não conhecemos a ele próprio, pessoalmente, relação que confere as suas palavras outro tempero.
No Ceará, são nossas paisagens, ruas e fatos que estão no foco das lentes literária sempre a postos dos cronistas. Fala-se de algo de nossa pertença. E quem, desde jovem, aprendeu a ler Fortaleza pelas linhas dos cronistas semanais foi o escritor e também cronista Pedro Salgueiro. Por meio dele e de suas memórias, iniciamos esse passeio pelos sujeitos que dão cor à crônica da terrinha.
Lirismo
Quando jovem, dos nomes rememorados por Pedro Salgueiro, o primeiro que vêm à lembrança é o daquele considerado o maior cronista da história do Ceará: Milton Dias (1919-1983).
Nascido em Ipu, Milton descobriu ainda no colégio sua vocação para a escrita. Quando adulto, dividiu-se entre dois amores, a língua materna e o francês, que estudou por muitos anos na própria França. Já no Ceará, tornou-se professor de Língua e Literatura Francesa na Universidade Federal do Ceará (UFC). Mas se a pesquisa e a docência lhe impulsionavam ao idioma estrangeiro, as crônicas lhe traziam de volta ao seio de sua terra. Livros como "Relembranças" e "As Cunhãs" revelam seu trato com o bom português. "Milton era cheio de lirismo. Lembrava a escrita de Rubem Braga algumas vezes", rememora Salgueiro.
Desta mesma época, o escritor lembra ainda outro nome, aliás, pouco conhecido por suas crônicas: Moreira Campos. Também professor de Letras na UFC e sócio-fundador do movimento literário conhecido por Grupo Clã, do qual Milton Dias fez parte, Moreira foi muito mais condecorado por seus contos do que por sua crônica e poesia. "Algumas pessoas dedicam-se a pesquisar Moreira Campos no Ceará, mas não conheço quem tenha estudado esta vertente de cronista, muito menos a de poeta, já que ele só lançou um livro do gênero", comenta.
Ímpares
Agora, a figura ímpar, imprescindível ao se falar do gênero no Ceará é certamente Ciro Colares. O jornalista forjou-se inicialmente entre as máquinas do Correio do Ceará, onde trabalhava o pai. Aos 18 anos, ingressou no jornal, mas como revisor. Apenas em 1946 começou a escrever e, desde então, foram 60 anos de jornalismo. Entre tantas produções, foi colunista também do Diário do Nordeste, integrando o Caderno 3 aos domingos, no fim dos anos 90.
"O Ciro é um sujeito à parte mesmo, por que é muito importante. O modo como ele se referia a Fortaleza era único, ele conseguiu escrever crônicas atemporais ainda que tratassem de acontecimentos factuais. Ele tinha uma escrita de que eu gostava muito, pois lembrava o Manuel Bandeira cronista. De excelente qualidade", reforça Pedro.
De fato, a escrita de Ciro Colares, registrada em 17 livros de crônica, se destacou pelo carinho com que tratava de Fortaleza, escrita em tal estilo que lembrava muito mais uma poesia.
Aqui, criou personagens como as sereias que dizia existir nos mares da Capital, a qual batizou Fortalezamada. Recentemente, a memória de Ciro foi preservada em livro, escrito pela jornalista Lucíola Limaverde: "Ciro Colares: a crônica paixão por Fortaleza".
Além do talento de encontrar e criar personagens, o cronista é aquele possuidor da dileta virtude de se tornar personagem e, nesse sentido, Airton Monte, ainda hoje, tem sido um mestre.
Ele, esposo devoto de Sônia, a quem chama de "santa" (porque será?); ele, que em seus textos revelou o gosto por andar nu pela casa; ele, psiquiatra, que confessou morrer de medo de médicos; ele que teorizou: "Há mais vantagens em viver sozinho do que usar o banheiro com a porta aberta". A trajetória do escritor também foi repassada no livro-reportagem "Airton no divã - várias faces do boêmio", da jornalista Anamélia Sampaio Farias.
Em termos de visibilidade, contudo, um nome entre os cearenses desta seara se destaca: certamente Rachel de Queiroz. Uma das poucas mulheres citadas entre os muitos homens adeptos do gênero, Rachel fez uma porção de leitores da revista "O Cruzeiro" começarem a leitura pelo fim, já que suas crônicas iam publicadas na última página do periódico.
Muito antes, no entanto, de tornar-se escritora exclusiva da revista carioca, Rachel havia sido cronista de jornais como Correio da Manhã e Diário da Tarde, e, ainda antes, colunista de O Ceará, onde começou, muito nova, sob o pseudônimo Rita de Queluz. Entre seus trabalhos, constam pelo menos 14 livros de crônica.
"Comparando a crônica cearense com a de outros estados creio que não há muita diferença. Nossos temas são parecidos, o que muda mesmo é o estilo. Rachel tinha um jeito único de conversar com o leitor. Alguns são mais líricos, como já citei, outros preferem tratar do cotidiano, como o jornalista Gervásio de Paula, do Diário do Nordeste, que gosto muito. Já outros são mais cerebrais, mais densos como Ana Miranda, que escreve verdadeiros tratados, com muita pesquisa e informações", relaciona o escritor.
Contemporâneos
Segundo Pedro Salgueiro, que figura entre os cronistas cearenses contemporâneos, a popularização dos blogs na internet tem surtido efeito também na produção literária cearense. "Além dos jornais, acompanho também muitos blogs de escritores que postam quase que diariamente. Eles tem rendido, sim, bons escritores de crônica", afirma.
Entre eles, Pedro cita o blog Literatura Sem Fronteiras, de Nilto Maciel literaturasemfronteiras.blogspot.com). "O Nilto tem um modo interessante de fazer crônica porque, muitas vezes, faz uso de seu estilo para fazer uma resenha de livro, por exemplo. Ele cria um personagem fictício e começa a debater com ele, iniciando uma conversa sobre o certo título...", comenta. Além de Nilto, uma leva de outros bons cronistas vem sendo composta, entre outros, por Raymundo Netto, Flávio Paiva (também do Diário do Nordeste) e Tércia Montenegro, todos vez em quando papeando em nossos jornais.
Fique por dentro
Crônica N° 1*
Tanto neste nosso jogo de ler e escrever, leitor amigo, como em qualquer outro jogo, o melhor é sempre obedecer às regras. Comecemos portanto obedecendo às da cortesia, que são as primeiras, e nos apresentemos um ao outro. Imagine que pretendendo ser permanente a página que hoje se inaugura, nem eu nem você, - os responsáveis por ela, - nos conhecermos direito. É que os diretores de revista, quando organizam as suas seções, fazem como os chefes de casa real arrumando os casamentos dinásticos: tratam noivado e celebram matrimônio à revelia dos interessados, que só se vão defrontar cara a cara na hora decisiva do "enfim sós".
Cá estamos também os dois no nosso "enfim sós" - e ambos, como é natural, meio desajeitados, meio carecidos de assunto: Comecemos pois a falar de você, que é tema mais interessante do que eu.
*Crônica de estreia de Rachel de Queiroz na revista "O Cruzeiro"
Amar uma cidade*
Amar uma cidade parece estranho, ela não tem diálogo, ela não tem sexo pra despertar pensamentos eróticos, mas às vezes se ama até mesmo um beco, o que parece ser uma bobagem, e o que é o amor senão uma bobagem?
uma ingenuidade ocasional, um desvio ou descarrilamento da razão?
Não se ama com a cabeça, ama-se sem saber porque, ama-se quase acidentalmente.
As cidades não são apenas os problemas do mostruário,
o ônibus cheio, a criança sem pão, o desastre inevitável,
uma cidade pode ser também aquela moça que está nua no supermercado,
a gente se aproxima e a ilusão se dissipa dentro de nossas lentes de grau, uma cidade pode ser esse momento de utopia.
*Trecho de Ciro Colares
MAYARA DE ARAÚJO
REPÓRTER
Fonte: Diário do Nordeste
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